Estou ‘xim’? Ouço mal, mas nada
enxergo quando me falta o papel…
“Insistentes chamadas para uma
consulta aos ouvidos de uma empresa com espaço físico na cidade.
Uma deslocação ao
estabelecimento. Uma “visita” aos ouvidos. Creio que por um não especialista.
E lá me convenceram, depois de
traçado o quadro de preocupações, a trazer uns aparelhos de valor
consideravelmente elevado.
Um único papel: garantia
comercial de um ano depois de expirados os três da garantia. Quiseram ainda
impingir-me um seguro, recusei-o.
E foi assim que me vi
carregada dos aparelhos e de encargos.
É normal este tipo de
práticas? Terei alguns direitos neste caso? Posso devolver os aparelhos e
desistir da compra?”
Ante os termos da consulta, a
resposta consequente:
1.
Conquanto pareça tratar-se compra e venda em
estabelecimento e, consequentemente, de contrato que deva ser cumprido
pontualmente, sem hipótese de qualquer arrependimento (aqui, sim), o facto é
que o circunstancialismo que o rodeou muda, de todo, o enquadramento.
2.
Parece tratar-se, não de um contrato normal,
mas de um “contrato fora de estabelecimento” ou seja, um contrato “celebrado na
presença física simultânea do fornecedor … e do consumidor em local indicado [o
do estabelecimento, como no caso, afinal] a que o consumidor se desloque, por
sua conta e risco, na sequência de uma comunicação comercial feita directa e
expressamente pelo fornecedor” [DL 24/2014: sub. v, al. i), art.º 3.º].
3.
Donde, se não bastar a lei com um contrato
meramente consensual (de boca, como nas mais das vezes), já que se exige nessas
circunstâncias que seja reduzido a escrito, devendo integrar o seu clausulado
as informações que de a a z constam do art.º 4.º do correspondente diploma [DL
24/2014: art.º 9.º].
4. O
fornecedor deve entregar uma cópia do contrato assinado em papel ou, se o
consumidor concordar, em qualquer outro suporte duradouro [DL 24/2014: n.º 2 do
art.º 9.º].
5. Independentemente
de considerações outras se acaso se tivesse observado a forma legal prescrita
(contrato de papel passado que não só de boca…), a saber, o período de 14 dias
para ponderação ou reflexão e o consequente exercício do direito de retractação
(o de dar o dito por não dito, se fosse o caso, nesse lapso de tempo), o
contrato nestas circunstâncias é nulo e de nenhum efeito [DL 24/2014: n. º 1,
art.º 9.º, art.º 10.º; Código Civil: art.º 220].
6. “A
nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada
oficiosamente pelo tribunal” [Código Civil: art.º 286].
7. “.. A declaração de nulidade tem efeito
retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a
restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”, logo,
devolverá os aparelhos e restituir-lhe-ão o preço pago {Código Civil: n.º 1 do
art.º 289].
8. Mas
não nos ficamos por aqui: a violação da norma que impõe a forma legal (a
redução a escrito, o contrato de papel passado que não meramente de boca…)
constitui ainda contra-ordenação económica grave, cujas coimas, em se tratando
de pequena empresa, se situam entre os € 4 000 a € 8 000 [DL 24/2014:
n.º 2, art.º 31; DL 09/2021: sub. III, al. b) art.º 18].
EM CONCLUSÃO
a. Se o
consumidor for chamado a um dado local (ainda que seja um estabelecimento comercial)
e nele comprar os produtos oferecidos, tal contrato considera-se celebrado fora
de estabelecimento, submetendo-se ao seu regime [DL 24/2014: sub. v, al. i), art.º 3.º].
b. Os
contratos aí celebrados estão sujeitos à forma escrita: têm de ser reduzidos a
papel ou constarem de outro suporte duradouro, à escolha do consumidor [DL
24/2014: art.º 9.º].
c.
Se não se observar a forma legal, os contratos
são nulos e de nenhum efeito [Cód. Civil: art.º 220].
d.
A nulidade obriga à restituição da coisa e à
devolução do preço [Cód. Civil: art.º 286].
e.
“A nulidade é invocável a todo o tempo por
qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal” [Cód.
Civil: n.º 1, art.º 289].
f.
A inobservância de forma (a não redução do
contrato a escrito) constitui ainda contra-ordenação económica grave, cujas
coimas, em se tratando de pequena empresa, se situam entre as 4 000 a 8 000
euros [DL 24/2014: n.º 2, art.º 31; DL 09/2021: sub. III, al. b), art.º 18].
Tal é, salvo melhor juízo, o
nosso parecer.
Mário Frota