(edição de 31 de Maio de 2024)
Ainda as ‘entradas’ feitas de
pequenos nadas…
de gralhas e putativas interpretações
falhas!
“Afinal, do Guia de Boas
Práticas da Restauração, elaborado pela associação do sector (AHRESP) e a Direcção-Geral
do Consumidor, ao tempo dependente do Ministério da Economia e do Mar, também
vogam na interpretação de que, ainda que não peçam as entradas, se as
consumirem ou inutilizarem, os comensais terão de as pagar.
Quer comentar?”
Apreciada a questão, eis
o que se nos oferece dizer:
1. Essencial
é saber qual o valor do silêncio numa qualquer relação jurídica de consumo:
quem cala consente? Quem cala parece consentir? Quem cala não consente?
2. A
Lei-Quadro de Defesa do Consumidor prescreve no n.º 4 do seu artigo 9.º:
“O
consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha
prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua
cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da
sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento
ou deterioração.”
3. A
Lei dos Contratos à Distância e de Outras Práticas Negociais estabelece
imperativamente no seu artigo 28:
“1
- É proibida a cobrança de qualquer tipo de pagamento relativo a fornecimento não
solicitado de bens… ou a prestação de
serviços não solicitada pelo consumidor…”
2
- Para efeitos do disposto no número anterior, a ausência de resposta do
consumidor [o silêncio] na sequência do fornecimento ou da prestação não
solicitado não vale como consentimento.”
4. A
Lei das Práticas Negociais Desleais, na alínea f) do seu artigo12, reza o
seguinte:
“São
consideradas agressivas, em qualquer circunstância, as seguintes práticas
comerciais: … exigir o pagamento imediato ou diferido de bens e serviços ou a
devolução ou a guarda de bens fornecidos pelo profissional que o consumidor não
tenha solicitado…”
5. O
Regime Jurídico do Exercício e Actividade do Comércio, Serviço e Restauração
diz inequivocamente, na esteira do princípio que perpassa pelo ordenamento
jurídico de consumidores, no n.º 3 do seu artigo 135:
“Nenhum
prato, produto alimentar ou bebida, incluindo o ‘couvert’, pode ser cobrado se
não for solicitado pelo cliente ou por este for inutilizado.”
6. Ora,
o facto de se servir as entradas sem a aquiescência do consumidor (a resposta afirmativa
a um simples: é servido de pão, de azeitonas, de paté de atum, de bolinhos de
bacalhau, de croquetes, de chamuças, do que quer que seja, das entradas, em
suma?) constitui como que algo de forçado e tem de seguir a filosofia da lei:
não pediu, não pagou, ainda que consuma, ainda que inutilize, provando um
pedacinho; e não paga como “sanção” pelo abuso do titular do estabelecimento ou
seus prepostos, para além se se tratar de um ilícito contra-ordenacional
sujeito a coima.
7. Por
conseguinte, a interpretação enviesada que no Guia se reflecte fere a letra e o
espírito da lei e a sistemática do direito do consumo. E não se percebe como é
que a DGC embarcou nessa “interpretação peregrina” que vem da comprometida
“Deco-Proteste, Limitada”, sucursal da multinacional belga Euroconsumers, S.A. que, como empresa, que não como associação
cuja condição usurpa, serve os interesses de quem lhe paga.
8. De
uma vez por todas deveria haver aqui um ponto de ordem: “não solicitou, mas comeu,
inutilizou, não pagou”. É elementar e, ademais, é legal! Como forma de “punir”
os abusos que por aí campeiam!
9. Não
nos venham com lérias! Como diz a multinacional numa tirada singular, mas ultra
reverberável: “quem cala consente, quem trinca consente mais”! Nem consente nem
é de boa gente deixa passar esse entendimento indecente, sumamente deprimente!
CONCLUSÃO
a.
O entendimento “sufragado” pela AHRESP e a
DGC de que “ainda que não peçam as entradas, se as consumirem ou inutilizarem,
os comensais terão de as pagar” não adere nem à letra nem ao espírito da lei,
nem sequer ao seu elemento histórico e sistemático: e está nos antípodas do que
ali se prescreve!
b.
Para o ordenamento jurídico dos consumidores,
ao contrário do que possa ocorrer no dos mercadores, “quem cala não consente” (cfr. n.ºs de 2 a 4).
c. “Nenhum prato, produto alimentar ou
bebida, incluindo o ‘couvert’, pode ser
cobrado se não for solicitado pelo cliente ou (se) por este for inutilizado.”
(DL 10/2015: n.º 3 do art.º 135)
Este é, salvo melhor
juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal