Ainda a propósito de idosos e hipervulnerabilidade (XVI Jornadas Transmontanas de Direito do Consumo que decorreram em Mirandela, por iniciativa da Delegação da apDC) um texto do saudoso Conselheiro Neves Ribeiro, vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, co-fundador da apDC.
Um texto marcado pela ruralidade: país rural, país real! Que reflecte uma realidade de há anos, no acesso universal aos serviços de interesse geral e, para além do mais, na pungente pobreza energética que lhes subjaz.
E nos números astronómicos dos que vivem ‘empalmados’ entre a pobreza e a miséria…
Em Portugal, no período imediatamente anterior ao da emergência de saúde pública, a pobreza atingia 2,5 milhões de pessoas numa população de pouco mais de 10 milhões.
Um inquérito promovido em 21 dos 27 Estados da U.E. revelou que 6 em cada 10 consumidores experimentavam aí sérias dificuldades financeiras susceptíveis de os lançar em endividamento excessivo.
Em 2022, mais de sete em cada 10 pensões de velhice da Segurança Social, entre nós, estavam abaixo do salário mínimo nacional.
De recordar que este ano o valor mínimo mensal das pensões de velhice e invalidez da Segurança Social é de 319,49 euros e, para as de sobrevivência, de 191,69 €.
Em 2018, o mínimo de dignidade existencial
cifrava-se em 784 €: e o salário mínimo era de 580 €.
Em 2024, o mínimo de dignidade existencial é de 956, 68 €: e o salário mínimo é de 820 €!
Estes dados, por si só, deveriam envergonhar-nos como nação, mas as elites lisboetas passam por eles como ‘gato por brasas’…
Eis o texto:
“O consumidor acabará sempre por pagar a factura!
Se não paga, então, mais tarde ou mais cedo, cortam-lhe a água, a luz, o gás ou o telefone.
Poupa na água, não se aquece. E tem o telefone só para receber chamadas da filha que vive em Lisboa.
Não telefona para ninguém!
Um dia, chega-lhe a factura da luz.
Ora, andou a mulher a poupar no gasto, deitou-se mais cedo, não acendeu a televisão, rapou frio de rachar para evitar ligar o “radiador”, e pagou três vezes mais do que gastou.
São gastos essenciais à vida. Não se pode ir para a cama com as galinhas, nem apanhar por sacrifício, frio de rachar, ou estar sempre a apagar a luz. E por aí fora…!
Por isso, a mulher reclamou uma vez… duas vezes, e sempre a mesma resposta de quem “fala, fala e não faz nada”!
A mulher releu a factura da luz… do telefone. Queixou-se à filha que vive em Lisboa.
E esta reportou-lhe as somas líquidas dos lucros da EDP, da PT (MEO) e de outros fornecedores de bens de consumo essenciais.
E então, quem dá voz à minha razão, perguntou a mãe irritada, como se a filha, silenciosa, tivesse culpa de tudo?
“Não sei – respondeu a voz de Lisboa! O melhor é voltar a reclamar…”
Neves Ribeiro, guindado às altas esferas, jamais se dissociou dos reais problemas do País real, do País profundo, e da sorte de quantos, em verdade, economicamente débeis, sofrem as agruras do quotidiano. Jamais se deixou encarcerar nas Torres de Marfim para que determinados lugares insidiosamente convidam.
Neves Ribeiro era Homem de uma rara percepção dos problemas correntes dos consumidores, sobretudo dos de mais modestos recursos. E da sua Carta de Direitos, autêntica Carta de Alforria,
Neves Ribeiro deu um ímpar testemunho de vida ao alinhar por quantos não se aquecem nos rigores do inverno, não fruem dos fulgores civilizacionais das energias de ponta, não se comunicam para evitar facturas com números demasiado redondos, não desfrutam dos benefícios que as tecnologias "impuseram" à vida dos mais afortunados, mergulhados num pântano de exclusões que os poderes das majestáticas vão impiedosamente alimentando …
Fazia-o com uma rara distinção, em gestos de tocante solidariedade, de modo discreto, sem alardes, que os que consigo privavam captavam, porém, cirurgicamente. Na simplicidade de que se ornava, na autenticidade de uma personalidade vincada.
Quem cuida das vozes que, fora da capital sobretudo, mal reclamam pelo frio de rachar que passam, pelo precioso líquido que não consomem, pelas comunicações a que se furtam, pelos transportes públicos que não usam porque sem vigor para os ‘ensanduíchamentos’ a que se sujeitam, e pelas avultadas facturas com que se confrontam?
Quem?
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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