A Responsabilidade do Produtor, ante a inestancável evolução operada nos produtos, conhece notável desenvolvimento.
A Directiva de 25 de Setembro de 1984 que o saudoso João Calvão da Silva tratara primorosamente na dissertação de doutoramento, com que nos brindara em 1990, adaptar-se-á a um mundo tecido de inexpugnáveis laços de elementos outros com distinta configuração no seio da sociedade digital.
A Directiva pretendera oferecer uma resposta a situações como as que deflagraram com a Thalidomida e o Contergan e “produziram” milhares de vítimas na Europa e nos Estados Unidos.
À época, os quadros jurídicos convencionais, fundavam a responsabilidade exclusivamente na culpa, a saber, era subjectiva, assentando exclusivamente na conduta do agente.
O que a Directiva de 1984 trouxera fora uma distinta perspectiva: fundamental seria que se abrisse uma porta à consagração de uma responsabilidade pelo risco, objectiva, para que se cobrisse toda a gama de situações que escapavam à culpa, como no caso.
A evolução operada na sociedade digital obriga a uma profunda revisão dos termos da Directiva da Responsabilidade do Produtor.
O conceito de produto alargou-se.
Os produtos na era digital podem ser tangíveis ou intangíveis.
“O software (…sistemas operativos, software permanente, programas
informáticos, aplicações ou sistemas de Inteligência Artificial) é cada
vez mais comum no mercado e desempenha um papel cada vez mais importante
na segurança dos produtos.
O software pode ser colocado no mercado como um produto autónomo ou posteriormente integrado noutros produtos como componente e, nessa medida, susceptível de causar danos ao ser posto em funcionamento.
Por razões de segurança jurídica, é importante clarificar … que o
software é um produto para efeitos de aplicação da responsabilidade
objetiva, independentemente do modo de fornecimento ou utilização e,
portanto, do facto de o software ser armazenado num dispositivo, de a
ele se aceder por meio de uma rede de comunicações ou tecnologias de
computação na núvem ou de ser facultado por meio de um modelo de
software como serviço.
Contudo, a informação não deve ser considerada um produto e as regras em
matéria de responsabilidade decorrente dos produtos não deverão,
portanto, aplicar-se ao conteúdo de ficheiros digitais, como ficheiros
multimédia ou livros electrónicos ou o mero código-fonte do software.
Um programador ou produtor de software, incluindo os prestadores de sistemas de IA, deverá ser considerado fabricante.”
Pelo que antecede se descortina um mundo prenhe de transformações neste domínio.
É cada vez mais comum que os serviços digitais se integrem num produto ou se interliguem de maneira que a ausência do serviço impeça o produto de desempenhar uma das suas funções.
“… É necessário alargar a responsabilidade objetiva aos serviços
digitais integrados ou interligados, uma vez que determinam a segurança
do produto do mesmo modo que os componentes físicos ou digitais.”
Tais serviços conexos hão-de considerar-se componentes do produto em que
se integram ou se interligam nas hipóteses em que se acham sob o
controlo do fabricante.
Simples exemplos de serviços conexos: o fornecimento contínuo de dados de tráfego num sistema de navegação, um serviço de monitorização da saúde assente em sensores de um produto físico que acompanhe a actividade física ou as métricas de saúde do utilizador, um serviço de controlo da temperatura que monitoriza e regula a temperatura de um frigorífico inteligente, ou um serviço de assistente de voz que permita controlar um ou mais produtos por meio de comandos de voz.
Conquanto no seu rol se não considerem, em princípio, os serviços, um produto que dependa de serviços de acesso à Internet e que não garanta a segurança em caso de perda de conectividade considerar-se-á, isso sim, defeituoso para efeitos de responsabilidade.
As sensíveis modificações ora introduzidas constituirão motivo de reflexão para os estudiosos.
As novas regras entrarão em vigor a 09 de Dezembro de 2026.
Que Portugal não tarde a transposição da Directiva, como em geral sucede!