I
ABERTURA
Comboios de Portugal: em baixa cadência a caminho da decadência
VL
Os passageiros dos caminhos-de-ferro desesperam pelos atrasos verificados nos diferentes trajectos.
E perguntam se não têm direitos. Porque desconhecem de todo se têm ou não ou se ficam às mãos da CP.
O que pode o Professor dizer a tal propósito?
MF
O regime dos serviços de transporte ferroviário em vigor em Portugal é subsidiário do regime da União Europeia.
Mas a informação, que deveria ser prestada pelo Estado e pela empresa, inexiste, simplesmente não existe.
Comecemos pelo reembolso dos títulos de transporte, os bilhetes de passagem.
VL
Se o passageiro não utilizar o título de transporte por motivo alheio ao operador, há lugar à devolução do dinheiro que pagou?
MF
Reembolso do título de transporte
Não há, em princípio, lugar à devolução do dinheiro. Perdeu o comboio. Não utilizou o bilhete porque apareceram outras coisas para fazer, houve uma doença súbita, paciência. Perde o dinheiro a favor da empresa operadora.
VL
E se as coisas se fizerem com tempo e p consumidor desistir de viajar, pode haver reembolso do preço pago?
MF
Aí Já o caso muda de figura.
Nos serviços de transporte regional, de longo curso e internacional, o passageiro tem direito a reaver até 75 % do valor pago pelo título de transporte, mediante a sua apresentação e desde que o reembolso se solicite antes do início da viagem:
o Até três horas (para serviços com lugar reservado);
o Até 30 minutos, quando se trate de transporte regional e de longo curso.
VL
E se houver atraso à partida, como é que as coisas se fazem?
MF
Do reembolso do preço do título de transporte
O reembolso do preço do título de transporte pago pelo passageiro é susceptível de se realizar se, por facto do transportador, o atraso à partida exceder - em viagens com duração
o inferior a uma hora – 30 minutos
o igual ou superior a uma hora – 60 minutos .
Nestes casos, desde que o peça, o connsumidor tem direito ao reembolso do preço do bilhete.
Cessa, porém, o direito ao reembolso se o passageiro tiver adquirido o título de transporte depois de se haver divulgado o atraso pelo operador.
Da Indemnização do preço do título de transporte
Se o passageiro não exercer o direito de reembolso – e sem perda do direito ao transporte – se se verificar um atraso entre o local de partida e de chegada indicados no título de transporte, por facto do operador ou do gestor da infra-estrutura, tem direito a uma indemnização se os atrasos forem de uma certa ordem:
o Entre 60 e 119 minutos, indemnização equivalente a 25% do preço do bilhete efetivamente pago correspondente ao serviço em que o atraso se registou;
o Iguais ou superiores a 120 minutos, o equivalente a 50% do preço do bilhete efetivamente pago, nas mesmas condições da hipótese anterior.
VL
E se se tratar de viagem de ida e volta?
MF
Se se tratar de viagem de ida e volta, a indemnização é calculada em função da metade do preço efetivamente pago pelo passageiro, salvo se houver atrasos indemnizáveis nas duas viagens.
Se o título de transporte se destinar a trajectos consecutivos, a indemnização calcula-se na proporção do preço global do título de transporte e das distâncias percorridas.
Não há, porém, direito a qualquer indemnização se
o O passageiro tiver sido informado do atraso antes da compra do título de transporte;
o O montante a pagar, de acordo com as precedentes regras, for igual ou inferior a 4 €;
o O atraso resultante da continuidade da viagem em serviço diferente ou do reencaminhamento for inferior a 60 minutos;
o O passageiro for titular de uma assinatura, passe ou título de transporte sazonal e houver comprovadamente alternativas viáveis para a sua deslocação, designadamente através de outros modos de transporte.
VL
E se a responsabilidade for, não do transportador, mas do gestor da infra-estrutura, não da CP, mas da REFER?
MF
Sempre que o atraso ou a supressão for da responsabilidade do gestor da infra-estrutura ferroviária, o operador tem sobre este o direito de regresso da importância paga, a título de indemnização, aos passageiros.
VL
Mas pode haver prejuízos causados pelos atrasos, a perda de um trabalho, a perda de um outro transporte, de uma conferência.
Esses prejuízos são susceptíveis de reparação, de ser indemnizados?
MF
Da indemnização pelos prejuízos causados
Sem prejuízo dos direitos que acabámos de referir, o passageiro tem ainda direito a uma indemnização por danos que resultem directa e exclusivamente de atrasos ou supressões de serviços de transporte ferroviário, por facto imputável ao operador ou ao gestor de infra-estrutura, a saber,
o Em caso de supressão de serviços regionais superiores a 50 km ou de serviços de longo curso, a indemnização é no montante do valor do prejuízo provado, com um limite correspondente a 100 vezes o valor do preço pago que não poderá exceder 250 €.
o Tratando-se de serviços urbanos, suburbanos e regionais até 50 km, a indemnização tem como limite até 25 vezes o valor do título pago.
A indemnização por danos devida por atraso na entrega de bagagem, de automóveis ou motociclos, por facto do operador, corresponde ao montante do valor do prejuízo provado, com um limite, porém, de 100 €.
Incumbe ao passageiro a prova dos danos e seus montantes.
A informação ao consumidor é primordial para que o exercício dos seus direitos se não obstrua em razão da ignorância que campeia.
O acesso ao direito é incumbência do Estado, como o é do mercado. E aqui estamos a zeros.
VL
Não há nas estações uns escaparates com estes direitos, resumidos, condensados, explícitos.
Custava alguma coisa?
MF
Nós como povo não temos a cultura da informação e menos ainda o respeito pelas leis.
O próprio Estado não cumpre as leis que quer pelo Parlamento quer pelo Governo edita.
O que diz a Lei do Acesso ao Direito e à Justiça?
No seu artigo 4.º estabelece o que segue:
Dever de informação
1 - Incumbe ao Estado realizar, de modo permanente e planeado, acções tendentes a tornar conhecido o direito e o ordenamento legal, através de publicação e de outras formas de comunicação, com vista a proporcionar um melhor exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres legalmente estabelecidos.
2 - A informação jurídica é prestada pelo Ministério da Justiça, em colaboração com todas as entidades interessadas, podendo ser celebrados protocolos para esse efeito.
A Lei-Quadro de Defesa do Consumidor estabelece de modo forma meridiana e inequívoca quanto à informação para o consumo, no seu artigo 7.º sob a epígrafe:
Direito à informação em geral
1 - Incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais desenvolver ações e adotar medidas tendentes à informação em geral do consumidor, designadamente através de:
…
b) Criação de serviços municipais de informação ao consumidor;
c) Constituição de conselhos municipais de consumo, com a representação, designadamente, de associações de interesses económicos e de interesses dos consumidores;
d) Criação de bases de dados e arquivos digitais acessíveis, de âmbito nacional, no domínio do direito do consumo, destinados a difundir informação geral e específica;
e) Criação de bases de dados e arquivos digitais acessíveis em matéria de direitos do consumidor, de acesso incondicionado.
2 - O serviço público de rádio e de televisão deve reservar espaços, em termos que a lei definirá, para a promoção dos interesses e direitos do consumidor.”
De tudo quanto fica, desde 1981 (data da primeira das leis de defesa do consumidor) como depois de 1996 (data da lei em vigor) que está tudo reduzido a zeros.
Nem serviços municipais autênticos e autónomos nos municípios, que nunca foram criados, nem conselhos municipais de consumo, nem base de dados e arquivos digitais nem informação na rádio e televisão públicas.
E isto por si só diz tudo.
É o Estado que viola as leis, é o Estado que prevarica, é o Estado que persiste em não cultivar a informação, a preferir a ignorância que serve efectivamente um mercado que não elege a probidade como valor primeiro.
Este, o estado a que isto chegou…
E não se vê jeitos de mudanças!
II
CONSULTÓRIOS
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO: caução não pode rimar com especulação
De um ouvinte de Abrantes:
“Em época de inscrições na Universidade, é um ‘ver se te avias’ à procura de quartos.
O caso passa-se em Coimbra.
Por um quarto mediano na Alta, pediram-me 460 € e, para assegurar o seu “aluguel”, o proprietário exige 2 meses de renda adiantada e 3 meses de caução.
Diz o senhorio que é a praxe no mercado e não faz a coisa por menos.
O certo é que é de uma conta calada que se trata: para garantir o quarto, a família terá de despender à cabeça 2 250 €, o que é um “investimento pesado”…
A lei autoriza que se peça 2 meses de renda adiantada e 3 meses de caução?
Ou a lei é omissa e são as regras do mercado que vigoram, ao sabor da demanda e da oferta?
Além disso, sendo o contrato por 3 anos, a actualização anual das rendas será ainda estabelecida pelo proprietário, já que quer ser ele a fazê-lo, à margem da lei.
Esse percentual poderá ser pactuado no contrato a bel prazer do senhorio?”
MF
1. Não é o mercado, através da lei da oferta e da procura, que rege neste particular.
2. É o Código Civil, onde se concentra parte substancial do regime do arrendamento urbano, que estabelece normas, imperativas, umas, supletivas, outras (que só integram o conteúdo dos contratos se os contraentes o não tiverem previsto ao contratar).
3. O Código Civil, no seu artigo 1076, reza sob a epígrafe “antecipação de rendas”:
“1 - O pagamento da renda pode ser antecipado, havendo acordo escrito, por período não superior a dois meses.
2 - As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respectivas, até ao valor correspondente a duas rendas.”
4. As praxes do mercado, se é que existem, em Coimbra, violam ostensivamente neste particular a lei e há que contrariá-las.
5. Na circunstância, contanto que o pactuado se reduza a escrito, sob pena de nulidade, não poderá o locador exigir mais do que o equivalente a 4 rendas mensais, duas, a título de antecipação, e outras duas como caução: logo, o montante inicial será de 1 800 €, que não 2 250 €.
6. Uma tal exigência constitui, em nossa opinião, crime de especulação previsto e punido pelo artigo 35 do DL 28/84, de 20 de Janeiro:
“1 - Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem:
a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos
regimes legais a que os mesmos estejam submetidos;
b) Alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter
lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da actividade resultariam
para os bens ou serviços ou, independentemente daquela intenção, os que
resultariam da regulamentação legal em vigor;
…
3 - Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior
a 40 dias.
…”
7. No que toca à actualização da renda, rege ainda o Código Civil que no n.º 1 do seu artigo 1077 estatui:
“As partes estipulam, por escrito, a possibilidade de actualização da renda e o respectivo regime”.
8. Só se aplicarão os limites na lei previstos, ou seja, os coeficientes de actualização legais, se nada tiver sido convencionado inter partes (Cód. Civil: n.º 2 do artigo 1077)
EM CONCLUSÃO
a. Ao celebrar-se um contrato de arrendamento, a antecipação das rendas, por se tratar de norma imperativa que não pode afastar-se por mera vontade dos contraentes, desde que a estipulação se reduza a escrito, não pode ultrapassar duas rendas (Cód. Civil: n.º 1 do art.º 1076).
b. E a caução também não pode ir além das duas rendas (Cód. Civil: n.º 2 do art.º 1076).
c. Se houver violação das regras supra referenciadas, configurar-se-á, na circunstância, um crime de especulação passível de penas de prisão de seis meses a tês anos e de multa não inferior a 100 dias (DL 28/84: al. b) do n.º 1 do art.º 35).
d. É lícito aos contraentes a estipulação dos coeficientes de actualização, contanto que os índices não sejam usurários: em 2024, a actualização legal foi de 6,94% (Aviso n.º 20980-A/2023).
e. Na ausência de estipulação, as actualizações far-se-ão com base nos coeficientes que a lei estabelece (e se publicarão em Outubro de cada um dos anos para vigorarem no ano imediato).

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