(edição
de 02 de Fevereiro de 2024 do Jornal As Beiras)
Obras:
fazes tu ou faço eu? Ou nem tu nem eu?
“A S.C.M. dispõe-se a
arrendar-me um andar, mas do contrato, igual a tantos outros, consta uma
cláusula em que as obras de reabilitação ficarão a meu cargo.
Invoca-se ali o artigo 1174
do Código Civil.
Pergunto se esta cláusula
é válida ou se não é obrigação do locador entregar a casa em condições de
habitabilidade.”
Apreciada a factualidade,
cumpre opinar:
1. Tratando-se
de uma relação de consumo, aplica-se, na circunstância, para além do Código
Civil e das mais leis avulsas, o que a Lei da Compra e Venda dos Bens de
Consumo estabelece.
2. E,
no caso, parece tratar-se, com efeito de uma relação de consumo: “considera-se consumidor todo aquele a quem
sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos,
destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter
profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (Lei 24/96: n.º 1 do art.º 1.º).
3. O
Código Civil, estabelece com efeito, no n.º 1 do seu artigo 1074, sob a
epígrafe “obras”, o que segue:
“Cabe
ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou
extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo
estipulação em contrário.”
4. No
entanto, aplicam-se na circunstância, ao que parece, as disposições da LCVBC - Lei
da Compra e Venda dos Bens de Consumo (DL 84/2021, de 18 de Outubro) em cuja
alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º se estatui que:
“O
presente decreto-lei é aplicável: …
(b)
Aos bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra
prestação de serviços, bem como à locação
de bens, com as necessárias adaptações.”
5. Ora,
a locação, de harmonia com o Código Civil (artigo 1023), versa tanto sobre
coisas móveis como imóveis:
“A
locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando
incide sobre coisa móvel.”
6. No
que tange às garantias, rege a LCVBC (n.º 1 do art.º 22):
“O
[locador] tem o dever de entregar ao consumidor os bens imóveis que sejam
conformes com o contrato de compra e venda e que apresentem características de
qualidade, de segurança, de habitabilidade,
de protecção ambiental e de funcionalidade de modo a assegurar a aptidão dos
mesmos ao uso a que se destinam durante o período de vida útil técnica e
economicamente razoável.”
7. O
locador “responde perante o consumidor por qualquer não conformidade que exista
quando o bem imóvel lhe é entregue e se manifeste no prazo de:
a)
10 anos, em relação … a elementos
construtivos estruturais;
b)
Cinco anos, em relação às restantes faltas de conformidade.” (LCVBC: n.º 1 do
artigo 23)
8.
Parece haver uma colisão de normas, ou seja, o que o Código Civil estabelece no
seu artigo 1074 e o que a Lei da Compra e Venda dos Bens de Consumo prescreve
nos seus artigos 22 e 23.
9.
Assim sendo, prevalece, por imperativa, a transcrita norma do n.º 1 do artigo
22 da LCVBC, razão por que a cláusula aposta no contrato de arrendamento é nula
(e de nenhum efeito), sendo que as obras de reabilitação incumbirão ao locador.
EM CONCLUSÃO
a. Em dadas circunstâncias, o arrendamento urbano
constitui uma relação de consumo (LDC - n.º 1 do artigo 2.º)
b. A
cláusula de um contrato de arrendamento urbano para habitação, estribada na
norma do n.º 1 do artigo 1074 do Código Civil, em que as obras de reabilitação do
prédio ou fracção cabem ao locatário colide com a norma do n.º 1 do artigo 22
da LCVBC (DL 84/2021): a primeira das normas é supletiva, a segunda é
imperativa.
c. Assim
sendo, o locador, no caso a entidade que dá de arrendamento, tem de suportar na
sua esfera as obras que entendeu pôr a cargo do locatário, por força dos artigos
22 e 23 da LCVBC.
d. É
nula a cláusula de um contrato de arrendamento para habitação que impõe ao locatário “executar todas as obras de conservação,
ordinárias ou extraordinárias” no prédio dado em locação, já que a norma que o
proíbe (LCVBC: artigos 22 e 23) prevalece sobre a do Código Civil (artigo
1074).
Tal é, salvo melhor
juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito
da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal