Obras: fazes tu ou faço eu? Ou nem tu nem eu?
“A S.C.M. dispõe-se a arrendar-me um andar, mas do contrato, igual a tantos outros, consta uma cláusula em que as obras de reabilitação ficarão a meu cargo.
Invoca-se ali o artigo 1174 do Código Civil.
Pergunto se esta cláusula é válida ou se não é obrigação do locador entregar a casa em condições de habitabilidade.”
Apreciada a factualidade, cumpre opinar:
1. Tratando-se de uma relação de consumo, aplica-se, na circunstância, para além do Código Civil e das mais leis avulsas, o que a Lei da Compra e Venda dos Bens de Consumo estabelece.
2. E, no caso, parece tratar-se, com efeito de uma relação de consumo: “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (Lei 24/96: n.º 1 do art.º 1.º).
3. O Código Civil, estabelece com efeito, no n.º 1 do seu artigo 1074, sob a epígrafe “obras”, o que segue:
“Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário.”
4. No entanto, aplicam-se na circunstância, ao que parece, as disposições da LCVBC - Lei da Compra e Venda dos Bens de Consumo (DL 84/2021, de 18 de Outubro) em cuja alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º se estatui que:
“O presente decreto-lei é aplicável: …
(b) Aos bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens, com as necessárias adaptações.”
5. Ora, a locação, de harmonia com o Código Civil (artigo 1023), versa tanto sobre coisas móveis como imóveis:
“A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.”
6. No que tange às garantias, rege a LCVBC (n.º 1 do art.º 22):
“O [locador] tem o dever de entregar ao consumidor os bens imóveis que sejam conformes com o contrato de compra e venda e que apresentem características de qualidade, de segurança, de habitabilidade, de protecção ambiental e de funcionalidade de modo a assegurar a aptidão dos mesmos ao uso a que se destinam durante o período de vida útil técnica e economicamente razoável.”
7. O locador “responde perante o consumidor por qualquer não conformidade que exista quando o bem imóvel lhe é entregue e se manifeste no prazo de:
a) 10 anos, em relação … a elementos construtivos estruturais;
b) Cinco anos, em relação às restantes faltas de conformidade.” (LCVBC: n.º 1 do artigo 23)
8. Parece haver uma colisão de normas, ou seja, o que o Código Civil estabelece no seu artigo 1074 e o que a Lei da Compra e Venda dos Bens de Consumo prescreve nos seus artigos 22 e 23.
9. Assim sendo, prevalece, por imperativa, a transcrita norma do n.º 1 do artigo 22 da LCVBC, razão por que a cláusula aposta no contrato de arrendamento é nula (e de nenhum efeito), sendo que as obras de reabilitação incumbirão ao locador.
EM CONCLUSÃO
a. Em dadas circunstâncias, o arrendamento urbano constitui uma relação de consumo (LDC - n.º 1 do artigo 2.º)
b. A cláusula de um contrato de arrendamento urbano para habitação, estribada na norma do n.º 1 do artigo 1074 do Código Civil, em que as obras de reabilitação do prédio ou fracção cabem ao locatário colide com a norma do n.º 1 do artigo 22 da LCVBC (DL 84/2021): a primeira das normas é supletiva, a segunda é imperativa.
c. Assim sendo, o locador, no caso a entidade que dá de arrendamento, tem de suportar na sua esfera as obras que entendeu pôr a cargo do locatário, por força dos artigos 22 e 23 da LCVBC.
d. É nula a cláusula de um contrato de arrendamento para habitação que impõe ao locatário “executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias” no prédio dado em locação, já que a norma que o proíbe (LCVBC: artigos 22 e 23) prevalece sobre a do Código Civil (artigo 1074).
Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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