Comprei,
em loja, um electrodoméstico com entrega no domicílio. Com pré-aviso de 24
horas.
A
coisa demora.
Não
poderei “retractar-me” “na pendência da entrega do bem”?
Entendo
que se a coisa demorar, 15 dias depois poderei desistir do contrato.
Posso
ou não?”
Ante a questão, cumpre
responder:
1. Se não se tratar de
1.1.
Uma
qualquer das modalidades de venda fora de estabelecimento (ainda que nele ou
noutro espaço físico, como a lei o prevê) (DL 24/2014: subal. I e VI da al. i)
do art.º 3.º);
1.2.
Um
contrato de venda a contento (sob reserva de a coisa agradar ao comprador) (Cód.
Civil: art.ºs 923 e s);
1.3.
Uma
venda sujeita a prova (sob condição de a coisa ser idónea para o fim a que se destina)
sob pena de, não servindo, o contrato se não formar (Cód. Civil: art.º 925),
o
negócio em causa é firme (insusceptível de o consumidor dele poder desistir), a
não ser que sobrevenha qualquer não conformidade (vício, avaria…) em que lhe
seja lícito, como remédio, pôr termo ao contrato, observados determinados
pressupostos ou em caso de uma eventual alteração das circunstâncias que leve à
cessação do contrato (Cód. Civil: art.ºs 406 e 437; DL 84/2021: n.º 1 do art.º
12, al. c) do n.º 1 do art.º 15 e art.º 16).
2. Opera neste particular a máxima "pacta
sunt servanda" (“os contratos têm de ser [integralmente] cumpridos”… “nem
que acabe o mundo”, como o sustentavam os canonistas): os contratos têm de ser pontualmente
cumpridos, isto é, ponto por ponto.
3. Tratando-se de uma “compra e venda
firme”, ponto é saber se houve ou não acordo quanto ao prazo de entrega (DL
84/2021: n.º 4 do art.º 11).
4. Não havendo acordo, o prazo subsidiário
previsto na lei para o efeito é de 30 dias (DL 84/2021: n.º 5 do art.º 11).
5. Não sendo cumprido o prazo de entrega,
desde que essencial, ou, não o havendo, o prazo supletivo de 30 dias, subsiste
a hipótese de se pôr termo ao contrato (de o resolver, diz a lei), desde que
cumpridos determinados requisitos, como o de se oferecer, neste caso, uma
segunda oportunidade ao fornecedor, ante um prazo adicional objecto de
notificação (DL 84/2021: n.ºs 7 e 8 do art.º 11).
6. Se
o consumidor puser termo ao contrato (se o resolver), por incumprimento do
prazo ou sua prorrogação, a restituição do preço pago terá de acontecer em 14
dias (DL 84/2021: n.º 9 do art.º 11).
7. Se o fornecedor, porém, não cumprir tal
prazo, restituirá em dobro o montante pago, como “pena” imposta pela lei (DL
84/2021: n.º 10 do art.º 11).
8. Incumbe ao fornecedor a prova do
cumprimento de tais obrigações (DL 84/2021: n.º 11 do art.º 11).
9. O fornecedor, ao enviar os bens, assume
o risco de perda ou dano, que só se transferirá para o consumidor quando este
ou um terceiro, a seu rogo, que não o transportador, adquirir a posse física
dos bens (DL 84/2021: n.º 12 do art.º 11).
10. O risco transfere-se, porém, para o
consumidor, no momento da entrega do bem ao transportador, se o consumidor confiar
o transporte a pessoa diferente da proposta pelo fornecedor (DL 84/2021: n.º 13
do art.º 11).
EM CONCLUSÃO
a. Se de um contrato firme se tratar, não
haverá lugar a desistência ou retractação (o “dar o dito por não dito”) (Cód.
Civil: art.º 406).
b. Direito de retractação haveria se se
tratasse de contrato fora de estabelecimento (em qualquer das suas modalidades),
susceptível de ser exercido em 14 ou 30 dias, consoante os casos, após a
entrega do bem ou, inexistindo uma tal cláusula, em 12 meses que se somam ao
prazo inicial (DL 24/2014: n.ºs 1 e 2 do art.º 10.º).
c. No caso dos contratos que hajam de ser
pontualmente cumpridos, como na hipótese vertida, ou se estipulou um prazo
insusceptível de prorrogação, porque essencial, ou não; em caso de omissão, o
prazo de entrega é de 30 dias (DL 84/2021: n.ºs 4 e 5 do art.º 11).
d. A lei prevê a hipótese da concessão de
um prazo suplementar, em caso da não essencialidade dos bens em tempo preciso
(DL 84/2021: n.º 6 do art.º 11).
e. Em qualquer das hipóteses, havendo
incumprimento, confere-se ao consumidor a faculdade de pôr de imediato termo ao
contrato (DL 84/2021: n.ºs 7 e 8 do art.º 11).
f. Tendo sido posto termo ao contrato, o
fornecedor obriga-se, em 14 dias, a restituir o preço ao consumidor (DL
84/2021: n.º 9 do art.º 11).
g. Se o não fizer em 14 dias, restituirá tal
montante em dobro (DL 84/2021: n.º 10 do art.º 11).
Tal
é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário
Frota
presidente
emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO -
Portugal