Senhor Diretor,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhora Ministra da Saúde, Senhores decisores políticos
Sou médico. Tenho 74 anos. Tenho diabetes mellitus. Tenho formação, conhecimento e, sobretudo, experiência. Monitorizo a minha glicemia com sensores. Ajusto a insulina. Cuido de mim. Continuo a exercer, a ensinar, a produzir — e a viver com saúde. Hoje, antes de almoçar, medi os valores através do meu sensor. Estavam normais. Escolhi bacalhau à lagareiro. Calculei os hidratos, injetei cinco unidades de insulina rápida. Sentei-me à mesa. E, ainda antes de pegar nos talheres, soube com quase toda a certeza: não morrerei de diabetes, nem das suas complicações. Não porque sou excecional, mas porque tenho acesso à tecnologia, à terapêutica certa e ao conhecimento clínico para utilizá-la. Milhares de doentes em Portugal não têm essa sorte. E agora, por decisão do Governo, vão continuar a não tê-la. A recente decisão que restringe a prescrição de sensores de glicose intersticial e de agonistas dos recetores GLP-1 a apenas quatro especialidades (endocrinologia-nutrição, medicina interna, pediatria e medicina geral e familiar) é um insulto à classe médica, uma afronta à ciência, uma limitação absurda e injustificada. Os médicos não são técnicos de especialidade. São clínicos. São treinados para tratar pessoas, não etiquetas. Muitos de nós, fora dessas quatro áreas, seguimos, tratamos e orientamos doentes com diabetes com rigor, conhecimento e proximidade. Os nossos doentes confiam em nós. E com razão. Esta decisão é discriminatória. É tecnocrática, no pior sentido. É ineficiente e injusta. E, para dizê-lo com toda a clareza: é desumana. Claro que posso continuar a usar sensores. Tenho meios para os pagar. Mas — e os outros? Os doentes com baixos rendimentos? Os reformados? Os que vivem no interior, sem acesso regular a especialistas? Os que confiam no seu médico habitual, que os conhece e acompanha há décadas? Quem os protege? Quem os escuta? Quem cuida deles? Dizer que não se pode prescrever um sensor porque se é médico “da especialidade errada” é um atentado à razão, à justiça e à saúde pública. É tratar os médicos como funcionários de formulário e os doentes como números. Mas esses médicos das ditas “especialidades erradas” podem continuar a prescrever insulinas! Isto entende-se? Claro que não. Recuso-me, como médico, cidadão, professor e político, a aceitar esta política. A saúde de um povo não se mede pelos custos dos sensores. Mede-se pela sua liberdade, produtividade, bem-estar e dignidade. Apelo ao bom senso. Apelo à correção imediata desta medida. Apelo, sobretudo, à escuta da comunidade médica — e dos doentes. A medicina portuguesa merece mais. Os doentes portugueses também.
Salvador Massano Cardoso Médico,
professor catedrático aposentado de Epidemiologia e Medicina Preventiva, cidadão, pessoa com diabetes controlada..

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