“De férias em Portugal, em dia de calor extremo, dirigi-me a um estabelecimento, em Lisboa, para comprar duas garrafas de água. Depois de aviado, dei uma nota de 5 euros para pagamento e o empregado recusou. Próximo do caixa, um aviso: “pagamento só com cartão”!
Embora o Pix esteja generalizado no Brasil e até os pobres “exijam” hoje as esmolas em pix, o certo é que nunca vi que se pudesse transformar em lei a recusa da moeda corrente, símbolo da soberania do Estado.
No Brasil é crime contra a economia popular. Com pena de prisão.
Em Portugal é “legal” a recusa da moeda com “curso forçado”?
Nota: sou magistrado de um tribunal superior e surpreende-me que tais práticas triunfem em Portugal sem uma intervenção exemplar das autoridades.”
Ante os factos, o parecer:
1. Na realidade, ao Regulamento n.º 974/98, de 3 de Maio, que introduziu o euro, não se seguiu eventual iniciativa legislativa interna tendente a definir a moldura sancionatória para as situações de incumprimento.
2. A Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março de 2010, da Comissão Europeia, com carácter interpretativo, define: "os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adopção de outros meios de pagamento" [Rec. 2010/191: al. a) do n.º 1].
3. A
Recomendação diz mais:
"A afixação de letreiros ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores.”
4. O Banco de Portugal é o garante da moeda com curso legal.
5. Daí que lhe cumprisse, perante as participações que lhe vêm sendo dirigidas, notificar os infractores a que afeiçoem a sua conduta aos ditames da lei, sob pena de desobediência.
6. O Código Penal prescreve:
“Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade… competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se, na ausência de disposição legal, a autoridade fizer a correspondente cominação.” (Lei 48/95: al. b) do n.º 1 do art.º 348).
7. Os letreiros, cartazes, anúncios, que surgem com advertências a recusar a moeda com curso legal em exclusivo benefício dos cartões de pagamento, constituem condições gerais dos contratos (DL 446/85: art.º 2.º).
8. No caso, é de condições gerais absolutamente proibidas que se trata e, trasladadas para os contratos singulares, convertem-se em cláusulas feridas de nulidade [DL 446/85: art.º 12 e al. a) do art.º 21].
9. Porque absolutamente proibidas, configuram, na circunstância, ilícitos de mera ordenação social (DL 446/85: n.º 1 do art.º 34-A)
10. A contra-ordenação económica resultante é “muito grave” com coimas aplicáveis que variam segundo a dimensão da empresa (DL 09/2021: al. c) do art.º 18).
11. As violações no espaço nacional montam em:
11.1. Micro-empresas - € 3 000 a € 11 500
11.2. Pequenas empresas – € 8 000 a € 30 000
11.3. Médias empresas - € 16 000 a € 60 000
11.4. Grandes empresas - € 24 000 a € 90 000
[DL 446/85: n.º 1 do art.º 34-A; DL 09/2021: al. c) do art.º 18].
8. No Espaço Económico Europeu, as coimas atingirão ou 4% do volume de negócios anual ou, a não ser possível apurá-lo, montante até € 2 000 000.
9. Cabe ao consumidor exigir, de par com a presença da autoridade policial para remover a resistência, o livro em suporte papel para deduzir a reclamação a apresentar ao Banco de Portugal [DL 156/2005: n.º 5 do art.º 2.º; DL 446/85: n.º 1 art.º 34 - C].
EM CONCLUSÃO
a. A lei proíbe, em princípio, a recusa de dinheiro com curso legal [Rec. C.E n.º 191/2010: al. a) do n.º 1].
b. Se, notificado para adequar a conduta à lei, o infractor persistir na recusa, comete crime de desobediência (Cód. Penal: al. b) do n.º 1 do art.º 348)
c. A recusa, com expressão em qualquer suporte físico, constitui condição geral dos contratos [DL 446/85: art.º 2.º].
d. Uma tal condição é absolutamente proibida [DL 446/85: al. a) do art.º 21].
e. E constitui contra-ordenação económica muito grave com coima de € 3 000 (mínimo para micro-empresa) a € 90 000 (máximo para grande empresa) [DL 446/85: n.º 1 do art.º 34-A e DL 09/2021: al. c) do art.º 18].
Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
Presidente da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal

Sem comentários:
Enviar um comentário