quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Mercosul e a proteção do consumidor contra o superendividamento

 
O Mercado Comum do Sul (ou, simplesmente, Mercosul), bloco econômico criado em 26 de março de 1991, pelo Tratado de Assunção [1], procura implementar entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (Estados fundadores) um mercado comum, que implique nas chamadas quatro liberdades de circulação: mercadorias, serviços, capitais e pessoas.

Para poder tornar realidade as liberdades de circulação referidas — com relação às quais, é necessário dizer, somente a primeira (de mercadorias) é a que está em processo de consolidação —, o Mercosul necessita apoiar-se em estruturas jurídicas sólidas que permitam o cumprimento das finalidades propostas. Neste ponto, insere-se a preocupação com o estabelecimento de normas destinadas a harmonizar a legislação doméstica dos Estados, consoante determina o artigo 1º do Tratado de Assunção, conforme o qual, o mercado comum também implica no (...) "compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração".

Com relação ao tema, tal como já expressamos em outra oportunidade, "não se encontra, no tratado constitutivo, nenhuma referência expressa ou direta à harmonização legislativa em matéria de direito do consumidor, constando, tão somente, uma menção genérica sobre a ampliação 'da oferta e qualidade de bens e serviços disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida dos habitantes', inserida no inciso 7º do Preâmbulo do Tratado de Assunção. Do mesmo modo, o art. 4º do Tratado referido, que impõe a necessidade de organização da estrutura geral de concorrência e transações comerciais na região, tampouco se ocupa da matéria referida, ainda que, obrigatoriamente, abarque de forma indireta as relações de consumo. De qualquer forma, como se observa, o certo é que o Tratado de Assunção, de 1991, não dirigiu sua atenção à proteção do consumidor, mas tão somente à necessidade do estabelecimento de normas e políticas macroeconômicas destinadas a colocar em funcionamento o bloco" [2].

Pese ao exposto, ainda que o tratado fundador tenha omitido a necessidade de se conferir proteção ao consumidor mercosulino, como sendo o principal agente ou destinatário da integração, responsável inclusive pelo regular andamento do comércio intra bloco, já que sem consumo, não há estímulo à circulação internacional das mercadorias, desde 23 de abril de 1994, quando se deu a assinatura da Declaração Conjunta dos Ministros de Economia, deu-se o pontapé inicial para o início do processo de harmonização legislativa neste âmbito, com o intuito aproximar o direito interno dos Estados em busca de um nível elevado de proteção ao consumidor, conforme as orientações e padrões internacionais.

Para levar a cabo esse desiderato, em 15 de fevereiro de 1995 criou-se o Comitê Técnico nº 7 (CT nº 7), composto pelas autoridades nacionais de defesa do consumidor dos Estados partes, responsável pela criação de propostas de harmonização legislativa e de uniformização de políticas públicas, visando desenvolver a proteção dos consumidores no Mercosul e, com isso, contribuir para a consolidação do mercado comum.

De 1995 até a presente data, muitas propostas de harmonização normativa foram realizadas a partir do trabalho do CT nº 7, várias das quais se converteram em resoluções aprovadas pelo Grupo Mercado Comum (GMC) ou em Decisões aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum (CMC).

É justamente com relação a esse trabalho de harmonização de legislações que cabe trazer à colação o Projeto de Resolução que vem sendo discutido no âmbito do CT nº 7 sobre "Proteção do Consumidor contra o Superendividamento" [3], cuja primeira versão foi elaborada pela presidência pro tempore Argentina e apresentada em 26 de março de 2021, em ocasião da XCVI Reunião Ordinária do CT nº 7, levada a cabo em Buenos Aires.

O projeto, inspirado nas consequências advindas do endividamento excessivo dos consumidores, observadas sobretudo no período da pandemia de Covid-19, no seu artigo 2º, qualifica o superendividamento do consumidor como sendo a situação caracterizada pela impossibilidade de cumprir com as obrigações exigíveis ou de imediata exigibilidade, sem comprometer o acesso e o gozo de bens essenciais. Nesse sentido, determina que os Estados partes do Mercosul devem estabelecer políticas de prevenção, tratamento e mitigação do superendividamento, à luz de princípios que deverão guiar a implementação destas medidas, tanto de ordem judicial quanto administrativa, visando superar a insolvência do consumidor. Entre eles, encontram-se: o respeito à dignidade da pessoa humana e da família; o crédito responsável; a proteção especial do consumidor em situação de hipervulnerabilidade; a boa fé; a prevenção de riscos; o imediatismo, a simplicidade, a celeridade e o baixo custo dos procedimentos, entre outros (artigo 7º). Para tanto, os princípios referidos deverão estar presentes nas ações que recaem sobretudo nos fornecedores de crédito e nos Estados.

Com relação aos fornecedores creditícios, o projeto mercosulino lhes impõe, no seu artigo 3º, o respeito ao princípio do crédito responsável. Nesse sentido, determina que estes deverão informar o consumidor acerca dos alcances do compromisso patrimonial derivado do crédito solicitado, levando em consideração os recursos existentes para afrontá-lo, a partir de uma avaliação dos antecedentes creditícios e da solvência patrimonial do consumidor. Essa análise deve ser realizada sem a intermediação de métodos automatizados e deve resultar num aconselhamento ao consumidor, abstendo-se o fornecedor de qualquer prática que induza a parte vulnerável da relação de consumo a um endividamento excessivo.

No que toca aos Estados, o projeto determina que estes deverão adotar medidas para a efetiva proteção dos consumidores de serviços financeiros, por meio do desenvolvimento de campanhas de informação; supervisão e regulação da publicidade, das práticas comerciais abusivas e das cláusulas abusivas contidas nos contratos de financiamento; adoção de mecanismos destinados a prevenir os riscos próprios do mercado de crédito; e implementação de programas especiais para proteger consumidores em situação de hipervulnerabilidade, como é o caso do consumidor idoso ou analfabeto (artigo 4º).

Ainda, no artigo 5º, o projeto aposta na educação financeira como instrumento para empoderar o consumidor, determinando que os Estados partes do Mercosul deverão incluir esse eixo temático nos planos gerais de educação para o consumo, como forma de se incentivar a gestão razoável da economia doméstica e a própria prevenção do superendividamento, sem prejuízo de que se invista na informação ao consumidor como medida para reduzir o estado de insolvência deste último (artigo 6º).

Como é facilmente verificável, o projeto está voltado inteiramente à prevenção do superendividamento, a partir de medidas e políticas públicas que devem ser tomadas pelas instituições financeiras e pelos Estados.

Pese ao exposto, até a presente data, ainda não temos a aprovação do texto no âmbito do CT nº 7, o qual, se aprovado, ainda deve ser submetido ao GMC, órgão com capacidade decisória e com competência para a aprovação de resoluções. E mais, depois de superadas essas fases, o texto aprovado, ainda necessita ser internalizado ao ordenamento jurídico doméstico de cada um dos Estados partes para finalmente poder ser aplicado.

Diante deste cenário, paira uma dúvida de óbvia resolução: não existem mais consumidores superendividados na Argentina, no Brasil, no Paraguai e no Uruguai, o que explicaria o descaso das delegações dos Estados com a aprovação do texto proposto [4]? Esta dúvida leva a outra: por que o Uruguai e o Brasil, especificamente, ainda estão "deliberando" internamente em torno à aprovação da proposta argentina [5]? Especialmente no caso brasileiro, agora que temos, finalmente, a aprovação da Lei do Superendividamento do Consumidor, Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021 (que foi aprovada alguns meses depois da propositura do projeto mercosulino), não precisamos pensar nas hipóteses de superendividamento do consumidor promovidas no âmbito do Mercosul, considerando que o Brasil é um dos sócios fundadores do bloco econômico? E no caso uruguaio, país que ainda não tem lei que regule o tema, não seria a aprovação do Projeto de Resolução do CT nº 7, no âmbito do Mercosul, uma fonte para impulsionar a adoção de norma interna destinada a prevenir e tratar o superendividamento dos consumidores?

Parece evidente que a aprovação do projeto mercosulino serviria de base para a implementação de legislação doméstica sobre o superendividamento do consumidor, no âmbito dos Estados partes que ainda não a possuem e que, infelizmente, são a maioria. Nesse sentido, cabe destacar que a Argentina [6] possui projetos de lei para regular o tema, assim como o Uruguai [7]. Já o Paraguai, nem sequer possui projeto normativo apresentado. Em outras palavras, somente o Brasil possui legislação interna regulando o endividamento excessivo do consumidor, o que também deveria estimular os demais sócios a adotarem legislação na matéria.

Por fim, fazer parte de um processo de integração regional significa comprometer-se com a consecução de seus objetivos, em conjunto, em sintonia com os demais Estados que o integram. Nesse âmbito, medidas destinadas a proteger o consumidor, sobretudo para evitar que este e sua família fiquem desprovidos do mínimo existencial para viver com dignidade, são imprescindíveis para o próprio sucesso da integração e, por conseguinte, para o desenvolvimento econômico da região.

 

[1] MERCOSUL. Tratado para a Constituição de um Mercado Comum entre a República Argentina, República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai. [Tratado de Assunção]. Assunção, [1991]. Disponível em: https://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=0GXnoF+V0qWCz+EoiVAdUg%3d%3d. Acesso em: 15 set. 2023.

[2] VIEIRA, Luciane Klein. O MERCOSUL como foro de codificação em matéria de direito do consumidor: estado da arte e perspectivas para o futuro. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; BRAGATO, Fernanda Frizzo (Orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Mestrado e Doutorado. Nº 15. São Leopoldo: Editora Karywa, 2019. p. 236.

[3] O inteiro teor da proposta normativa pode ser consultado em: MERCADO COMUM DO SUL. CT nº 7. Anexo V – Proyecto de Resolución CT nº 7 nº 02/2021. Protección al consumidor frente al sobreendeudamiento: assinado em 26 de março de 2021, em Buenos Aires, Argentina. Disponível em: https://documentos.mercosur.int/simfiles/proynormativas/83525_CCM-CT7_2021_ACTA02_ANE05_ES_P.Res.pdf. Acesso em: 14 set. 2023.

[4] Só no Brasil, conforme a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC), em junho de 2023, 78,5% das famílias brasileiras estão em situação de endividamento, sendo que deste total, 18,5% estão superendividadas, maior índice da série histórica iniciada em janeiro de 2010. (AGÊNCIA BRASIL. Pesquisa mostra que 78,5% das famílias brasileiras estão endividadas. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-07/pesquisa-mostra-que-785-das-familias-brasileiras-estao-endividadas. Acesso em: 14 set. 2023.)

[5] Na ata da CVIII Reunião Ordinária do CT nº 7, levada a cabo em 12 de maio de 2023, em Montevidéu, consta a informação de que Brasil e Uruguai estão procedendo a consultas internas, a fim de verificar se é possível a aprovação do Projeto de Resolução proposto. Para mais detalhes, ver: MERCADO COMUM DO SUL. CT nº 7. Acta nº 02/2023. CVII REUNIÓN ORDINARIA DEL COMITÉ TÉCNICO Nº 7 "DEFENSA DEL CONSUMIDOR": assinada em 12 de maio de 2023, em Montevidéu, Uruguai. Disponível em: https://documentos.mercosur.int/public/reuniones/doc/9491. Acesso em: 14 set. 2023.

[6] Na Argentina, foram apresentados dois Projetos de Código de Defesa do Consumidor, que incluem a questão do superendividamento, com regulações bastante semelhantes. Trata-se dos Projetos reconhecidos como "Expediente Nº 3143-D-2020", elaborado por uma Comissão de Juristas e apresentado em 26 de junho de 2020, na Câmara de Deputados do Congresso Nacional. O outro, que ingressou na mesma Casa Legislativa, toma parte da proposta anterior, tendo recebido a designação de "Expediente Nº 5156-D-2020", apresentado em 30 de setembro de 2020. Ambos projetos abordam a prevenção do superendividamento, a reabilitação financeira do consumidor e de sua família, impulsando a renegociação da dívida creditícia com as instituições financeiras. (JAPAZE, María Belén. La protección de los consumidores sobreendeudados en el MERCOSUR. Acciones del Comité Técnico nº 7. La regulación en los Estados Parte. La situación en Argentina. In: MARQUES, Cláudia Lima; VIEIRA, Luciane Klein; BAROCELLI, Sergio Sebastián (Dirs.) Los 30 años del MERCOSUR: avances, retrocesos y desafíos en materia de protección al consumidor. Buenos Aires: IJ Editores, 2021. Disponível em: https://latam.ijeditores.com/index.php?option=publicacion&idpublicacion=836. Acesso em: 15 set. 2023.)

[7] O projeto de lei uruguaio foi apresentado pelo Senado do Congresso Nacional, identificado como "Expediente nº 319/2020" sobre "Procedimiento de reestructuración de deudas de personas físicas". O projeto, que teve como base o modelo de regulação vigente na Nova Zelândia, cria um procedimento judicial para reestruturar o passivo das pessoas físicas, que deve ser precedido por um procedimento de conciliação em sede administrativa. Nos termos do art. 2º do projeto, os destinatários do procedimento especial referido serão os devedores de boa-fé, que não sejam titulares de bens ou que o seu patrimônio esteja composto por um único bem imóvel, com valor equivalente ao estabelecido como bem de família, e/ou cujos ingressos anuais sejam inferiores à soma de UI 120.000, o que equivaleria, hoje, a aproximadamente 17.800 dólares. (JAPAZE, María Belén. La protección de los consumidores sobreendeudados en el MERCOSUR. Acciones del Comité Técnico nº 7. La regulación en los Estados Parte. La situación en Argentina. In: MARQUES, Cláudia Lima; VIEIRA, Luciane Klein; BAROCELLI, Sergio Sebastián (Dirs.) Los 30 años del MERCOSUR: avances, retrocesos y desafíos en materia de protección al consumidor. Buenos Aires: IJ Editores, 2021. Disponível em: https://latam.ijeditores.com/index.php?option=publicacion&idpublicacion=836. Acesso em: 15 set. 2023.)

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