U´a Lista de
Devedores
Porque a
fulminar a lei
Não serve a
consumidores
Nem tem o
timbre do Rei
O Regulador
das Comunicações Electrónicas, em Portugal, adverte:
“Se tiver
facturas em dívida de valor superior a 20% do salário mínimo nacional (ou seja,
a 133€ desde 1 de Janeiro de 2021), os seus dados podem ser incluídos numa
lista de devedores. Esta lista é partilhada entre os operadores de comunicações
aderentes.
Antes de
incluir os seus dados na lista, o operador deve notificá-lo para, em 5 dias,
pagar o valor em dívida, provar que a dívida não existe ou que não lhe é
exigível (por exemplo, porque já prescreveu).
Assim que
for pago o valor em dívida, os dados devem ser imediatamente eliminados da
lista.
Qualquer
operador pode recusar-se a contratar um serviço com um utilizador que tenha
quantias em dívida, mesmo que a outro operador, salvo se a facturação em causa
tiver sido reclamada.”
O
dispositivo da Lei das Comunicações Electrónicas de 10 de Fevereiro de 2004
(Lei 5/2004) que o estabelece é o artigo 46.º, sob a epígrafe “mecanismos de
prevenção de contratação”.
E o que nele
se verte pode compendiar-se como segue:
§ As empresas que oferecem redes e
serviços de comunicações electrónicas ficam habilitadas, directamente ou por
intermédio das suas associações representativas, a criar e a gerir mecanismos
que permitam identificar os assinantes que não hajam satisfeito as suas
obrigações de pagamento relativamente aos contratos celebrados, nomeadamente
através da criação de uma base de dados partilhada.
§ A entidade gestora da base de dados
deve elaborar as respectivas condições de funcionamento, solicitando o parecer
prévio do Regulador, e submetê-las a aprovação da Comissão Nacional de
Protecção de Dados (CNPD).
§ Os mecanismos instituídos devem
respeitar as seguintes condições, sem prejuízo do regime aplicável à protecção
de dados pessoais e da privacidade:
o Os dados a
incluir devem circunscrever-se aos elementos absolutamente essenciais à
identificação dos assinantes incumpridores;
o Garantia
do direito de acesso, rectificação e actualização dos dados pelo respectivo
titular;
o Obrigação
de informação nos contratos ou de advertência expressa aos assinantes que já
tenham contrato celebrado da possibilidade da inscrição dos seus dados na base
de dados em caso de incumprimento das obrigações contratuais, explicitando o
montante da dívida a partir do qual se processa a inscrição dos dados dos
assinantes naquela base e os mecanismos que podem ser usados para impedir
aquela inclusão;
o Garantia
de que previamente à inclusão de dados dos assinantes na base estes são
notificados para, em prazo não inferior a cinco dias, sanar o incumprimento
contratual, regularizar o seu saldo devedor ou demonstrar a sua inexistência ou
inexigibilidade;
o Obrigação
de informar os assinantes, no prazo de cinco dias, de que os seus dados foram
incluídos na base de dados;
o As
empresas que pretendam aceder aos elementos disponibilizados devem igualmente
fornecer os elementos necessários relativos aos contratos por si celebrados em
que existam quantias em dívida;
o Todos os
elementos recebidos devem ser exclusivamente utilizados pelas empresas
participantes nos mecanismos instituídos, sendo vedada a sua transmissão, total
ou parcial, a terceiros, bem como a sua utilização para fins diversos dos
previstos anteriormente;
o Eliminação
imediata de todos os elementos relativos ao assinante após o pagamento das
dívidas em causa ou quando o seu valor seja inferior aos 20% do “salário mínimo
nacional”…
o Não
inclusão de dados relativos a assinantes que tenham apresentado comprovativo da
inexistência ou inexigibilidade da dívida ou enquanto decorrer a análise, pelo
operador ou prestador do serviço, dos argumentos apresentados para contestação
da existência do saldo devedor ou durante o cumprimento de acordo destinado ao
seu pagamento ou ainda de dados relativos a assinantes que tenham invocado
excepção de não cumprimento do contrato ou que tenham reclamado ou impugnado a
facturação apresentada;
o Garantia
do direito a indemnização do assinante, nos termos da lei geral, em caso de
inclusão indevida dos seus elementos nos mecanismos instituídos.
§ As condições de funcionamento da
base de dados devem garantir em absoluto quanto precedente e plasmado se acha
nos pontos assinalados e delas devem constar nomeadamente o seguinte:
o Montante
mínimo de crédito em dívida para que o assinante seja incluído na base de
dados, o qual não pode ser inferior a 20 % da remuneração mínima mensal
garantida;
o
Identificação das situações de incumprimento susceptíveis de registo na base de
dados, com eventual distinção de categorias de assinantes atento o montante em
dívida;
o Fixação de
um período de mora a partir do qual se permite a integração na base de dados;
o
Identificação dos dados susceptíveis de inclusão;
o Período de
permanência máximo de dados na base.
§ As empresas que oferecem redes e
serviços de comunicações electrónicas podem recusar a celebração de um contrato
relativamente a um assinante que tenha quantias em dívida respeitantes a
contratos anteriores celebrados com a mesma ou outra empresa, salvo se o
assinante tiver invocado excepção de não cumprimento do contrato ou tiver
reclamado ou impugnado a facturação apresentada.
§ O regime previsto neste particular
não é aplicável aos prestadores de serviço universal, os quais não podem
recusar-se a contratar no âmbito do serviço universal, sem prejuízo do direito
de exigir a prestação de garantias.
Constituem
contra ordenações muito graves as constantes dos pontos três e quatro,
nomeadamente, os que se prendem com a utilização exclusiva dos elementos, sendo
vedada a sua transmissão, total ou parcial, a terceiros, bem como a sua
utilização para fins diversos dos previstos para o efeito.
E a moldura
sancionatória é a que se inscreve infra:
As contra
ordenações muito graves são puníveis com as seguintes coimas:
Se
praticadas por
§ Microempresa - de 2.000 a 50 000 €;
§ Pequena empresa – de 6.000 a 150
000 €;
§ Média empresa - de 10 000 a 450 000
€;
§ Grande empresa - de 20 000 a 5 000
000 €.
No entanto,
situações do mais diverso jaez ocorrem, revelando que, para além da Lista Negra
de Devedores, conformemente à lei, autorizada e de circulação restrita para
evitar que os consumidores andem a saltar de operador em operador sem cumprir
as obrigações a que se vinculam, outras listas saem da cartola, como a dos Devedores
de Obrigações Naturais, como o revelam as próprias empresas que operam neste
segmento do mercado.
O que
constitui violação muito grave, passível de coima, como na circunstância, a que
o oligopólio se expõe, até ao limite de 5 000 000 €.
Dos Gabinetes
Municipais de Apoio ao Consumidor, presente a notícia de que os consumidores
são interpelados a pagar ou dívidas inexistentes ou dívidas prescritas, cuja
prescrição terá sido oportunamente invocada, dívidas e pretensas dívidas que
remontam a 2009, 2010, 2012, 2014…
Dívidas que
são apresentadas por uma tal INTRUM Portugal, agência de cobrança de dívidas.
Dever
primeiro a que se adscreve qualquer dos fornecedores, no mercado, é a
observância da cláusula geral da boa-fé.
Aliás, no
pórtico da Lei dos Serviços Públicos Essenciais que vigora em Portugal desde o
1.º de Agosto de 1996 inscreve-se de modo impressivo um tal princípio-regra:
“O prestador
do serviço deve proceder de boa-fé e em conformidade com os ditames que
decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a
importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger.”
Como o
registámos num outro escrito, “invocada a prescrição, judicial ou
extrajudicialmente, remanesce uma obrigação natural: a dívida jamais poderá ser
exigida através de acção ou injunção. Daí a contradição, ao ameaçar-se o
consumidor com a instauração de um processo ou procedimento judicial, como
consta do nefando rol de intimidações que a empresa de cobranças remeteu ao
consumidor.”
Nem sempre
se tem a noção do que seja uma obrigação natural: é a que se funda num mero
dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível:
se espontaneamente satisfeita, o seu cumprimento corresponderá a um dever de
justiça.
LISTA NEGRA
DOS DEVEDORES DE OBRIGAÇÕES NATURAIS
A criação de
uma LISTA NEGRA DOS DEVEDORES DE OBRIGAÇÕES NATURAIS é um artifício e é uma
aberração, em vista das consequências que se assacam às dívidas prescritas que
apagam as obrigações jurídicas e de que remanescem meras obrigações naturais,
judicialmente inexigíveis.
Ademais,
como noutro escrito o assinalámos, expõem os consumidores e os seus dados
pessoais a uma empresa estranha ao tráfego negocial e, nessa medida, há também
uma clara violação do Regulamento Geral de Protecção de Dados, que cumpre, a
justo título, denunciar.
Para além do
que se assinalou supra no que tange à transmissão de dívidas a empresas de
cobrança, como no caso.
Se tiver
havido uma qualquer cessão de dívidas a esse relapso cobrador, a MEO (o antigo
monopólio de telecomunicações) infringe o Código Civil que, no seu artigo 577,
proíbe o crédito que, pela própria natureza da prestação, se acha ligado à
pessoa do credor por se tratar de um serviço público essencial.
A INVOCAÇÃO
PRESCRIÇÃO É INIBITÓRIA
Se o
consumidor se recusar a pagar, porque invocada a prescrição, não pode daí advir
qualquer desvantagem:
§ Nem pode ser decretada a suspensão
do serviço;
§ Menos ainda a extinção do contrato;
§ Eventuais exigências de caução ou
outras garantias para poder continuar a fruir do serviço;
§ A recusa de celebração de um outro
contrato que ao consumidor importe…
§ A inserção em qualquer lista de
baixo teor reputacional (a origem do fenómeno está no credor, que não no
devedor: a prescrição não é um favor, é um direito, em homenagem à segurança
jurídica, e pelo exercício de um direito, conformemente às normas não poderão
advir prejuízos sejam de que ordem for sob pena de se actuar a responsabilidade
civil, onde quer que se entenda).
O ASSÉDIO
COMO PRÁTICA NEGOCIAL AGRESSIVA
O assédio
(as ameaças, as intimidações), constitui prática negocial agressiva: Lei das
Práticas Comerciais Desleais de 2008, de 26 de Abril.
“Assediar
mais não é do que “perseguir com propostas, sugerir com insistência; ser
inoportuno ao tentar obter algo; molestar; abordar súbita ou inesperadamente”.
A Lei das
Práticas Comerciais Desleais considera, como agressivas, entre outras:
. o fazer
solicitações persistentes e não solicitadas, por telefone, telecópia, correio
electrónico ou qualquer outro meio de comunicação à distância, …”
Daí que a
conduta da (mal afamada) agência de cobranças constitua um ilícito de consumo,
como se descreve supra, passível de coima e de sanções acessórias.
OS CRIMES
PERPETRADOS PELO AGENTE ECONÓMICO
Para além do
mais, o assédio constitui crime, nos termos do n.º 1 do artigo 154 - A do
Código Penal, passível, ao menos, de prisão até 3 anos ou multa:
“1 - Quem,
de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio,
directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação
ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão
até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra
disposição legal.”
A conduta
constitui ainda um crime de ofensa à reputação económica do consumidor,
previsto e punido pela Lei Penal Económica (Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de
Janeiro) que, no n.º 1 do seu artigo 41, prescreve:
“1 - Quem,
revelando ou divulgando factos prejudiciais à reputação económica de outra
pessoa, nomeadamente ao seu crédito, com consciência da falsidade dos mesmos
factos, desse modo lesar ou puser em perigo interesses pecuniários dessa pessoa
será punido com prisão até 1 ano e multa não inferior a 50 dias.”
Por
conseguinte, as refracções de uma tal conduta lesiva dos direitos de
personalidade do consumidor pelo ordenamento jurídico que se lhe afeiçoa são
abundantes e carecem de uma actuação conforme das autoridades, sob o influxo
dos lesados, para que possa haver alguma ordem no caos.
Mário Frota
apDC –
DIREITO DO CONSUMO - Coimbra
(artigo
publicado hoje, 26 de Outubro em curso, no Portal do PROCONS RS, Porto Alegre,
Brasil, por deferência do director da Escola Superior de Defesa do Consumidor,
Dr. Diego Ghiringhelli de Azevedo)