sábado, 30 de agosto de 2025

ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO: caução não pode rimar com especulação


“Em época de inscrições na Universidade, é um ‘ver se te avias’ à procura de quartos.

Por um quarto mediano na Alta, pediram-me 460 € e, para assegurar o seu “aluguel”, o proprietário exige 2 meses de renda adiantada e 3 meses de caução.

Diz o senhorio que é a praxe no mercado e não faz a coisa por menos.

O certo é que é de uma conta calada que se trata: para garantir o quarto, a família terá de despender à cabeça 2 250 €, o que é um “investimento pesado”…

A lei autoriza que se peça 2 meses de renda adiantada e 3 meses de caução?

Ou a lei é omissa e são as regras do mercado que vigoram, ao sabor da demanda e da oferta?

Além disso, sendo o contrato por 3 anos, a actualização anual das rendas será ainda estabelecida pelo proprietário, já que quer ser ele a fazê-lo, à margem da lei.

Esse percentual poderá ser pactuado no contrato a bel prazer do senhorio?”

 

Ante a questão suscitada, importa carrear a resposta, de harmonia com as disposições legais em vigor:

 

1.    Não é o mercado, através da lei da oferta e da procura, que rege neste particular.

 

2.    É o Código Civil, onde se concentra parte substancial do regime do arrendamento urbano, que estabelece normas, imperativas, umas, supletivas, outras (que só integram o conteúdo dos contratos se os contraentes o não tiverem previsto ao contratar).

 

3.    O Código Civil, no seu artigo 1076, reza sob a epígrafe “antecipação de rendas”:

“1 - O pagamento da renda pode ser antecipado, havendo acordo escrito, por período não superior a dois meses.

2 - As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respectivas, até ao valor correspondente a duas rendas.”

 

4.    As praxes do mercado, se é que existem, em Coimbra, neste particular, violam ostensivamente a lei e há que contrariá-las.

 

5.    Na circunstância, contanto que o pactuado se reduza a escrito, sob pena de nulidade, não poderá o locador exigir mais do que o equivalente a 4 rendas mensais, duas, a título de antecipação, e outras duas como caução: logo, o Montante inicial será de 1 800 €, que não 2 250 €.

 

6.    Uma tal exigência constitui, em nossa opinião, crime de especulação previsto e punido pelo artigo 35 do DL 28/84, de 20 de Janeiro:

 

“1 - Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem:


a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos;


b) Alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da actividade resultariam para os bens ou serviços ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor;


3 - Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias.

…”

 

7.    No que toca à actualização da renda, rege ainda o Código Civil que no n.º 1 do seu artigo 1077 estatui:

 

“As partes estipulam, por escrito, a possibilidade de actualização da renda e o respectivo regime”.

 

8.    Só se aplicarão os limites na lei previstos, ou seja, os coeficientes de actualização legais, se nada tiver sido convencionado inter partes (Cód. Civil: n.º 2 do artigo 1077)

 

EM CONCLUSÃO

a.    Ao celebrar-se um contrato de arrendamento, a antecipação das rendas, por se tratar de norma imperativa que não pode afastar-se por mera vontade dos contraentes, desde que a estipulação se reduza a escrito, não pode ultrapassar duas rendas (Cód. Civil: n.º 1 do art.º 1076).

 

b.    E a caução também não pode ir além das duas rendas (Cód. Civil: n.º 2 do art.º 1076).

 

c.    Se houver violação das regras supra referenciadas, configurar-se-á, na circunstância, um crime de especulação passível de penas de prisão de seis meses a tês anos e de multa não inferior a 100 dias (DL 28/84: al. b) do n.º 1 do art.º 35).

 

d.    É lícito aos contraentes a estipulação dos coeficientes de actualização, contanto que os índices não sejam usurários: em 2024, a actualização legal foi de 6,94% (Aviso n.º 20980-A/2023).

 

e.    Na ausência de estipulação, as actualizações far-se-ão com base nos coeficientes de actualização vigentes (que se publicarão em Outubro de cada um dos anos para vigorarem no ano imediato).

 

Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.

 

Mário Frota

Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal

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