(05 de Julho de 2024)
Campanhas, manhas e artimanhas…
Contratos ocos para ouvidos moucos…
“Atraído por uma comunicação comercial insistente, deslocámo-nos a determinadas instalações, em Coimbra, para experimentar um aparelho de audição para a minha Sogra. Após uma breve experiência, comprámos o aparelho pelo preço de 550 euros.
Ajustaram-no, mas com a indicação de que deveríamos tornar a um centro de apoio 15 dias depois para as afinações devidas.
De volta a casa, verificámos, afinal, que o aparelho não funcionava.
Queremos devolvê-lo. Estamos a encontrar muitas resistências. Teremos direito à devolução?”
Perante os factos, o direito aplicável:
1. Primeiro há que qualificar o contrato e, depois, apurar qual o regime da compra e venda de bens de consumo aplicável.
2. Ante a descrição efectuada, estaremos decerto perante um contrato de compra e venda fora de estabelecimento.
3. O contrato fora de estabelecimento é também, entre outros, o celebrado no local indicado pelo fornecedor, a que o consumidor se desloque, por sua conta e risco, na sequência de uma comunicação comercial que se lhe haja dirigido [DL 24/2014: subal. vi, alínea i) do artigo 3.º].
4. O contrato celebrado nestas circunstâncias tem de ser de papel passado. Com efeito, a lei é expressa em significar que
“1 - O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial é reduzido a escrito e deve, sob pena de nulidade, conter, de forma clara e compreensível e na língua portuguesa, as informações determinadas pelo artigo 4.º
2 - O fornecedor… deve entregar ao consumidor uma cópia do contrato assinado ou a confirmação do contrato em papel ou, se o consumidor concordar, noutro suporte duradouro …” [DL 24/2014: art.º 9.º].
5. Se for meramente verbal, o contrato é nulo de pleno direito: o que significa que, invocada a nulidade, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, a saber, o consumidor procede à restituição do bem e o fornecedor à devolução do preço pago [Código Civil: n.º 1 do art.º 289].
6. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal: não dependendo, pois, de prazo [Código Civil: art.º 286].
7. Se o contrato fosse válido, disporia, porém, o consumidor, de 14 dias para se retractar, ou seja, para dar o dito por não dito, após a entrega do bem, contanto que tal cláusula constasse do contrato [DL 24/2014: n.º 1 do art.º 10.º].
8. Se a cláusula não figurar no contrato, o consumidor disporá, não de 14 dias, mas de 12 meses (que acrescem aos 14 dias iniciais) para dar o dito por não dito [DL 24/2014: n.º 2 do art.º 10.º ].
9. Se o contrato fosse válido e eficaz, em caso de não conformidade do bem com o contrato (vício, defeito, avaria, divergência entre as especificações e o bem…), o consumidor disporia de 3 anos para exercer, no quadro da garantia legal, o seu direito à reparação ou substituição, redução proporcional do preço ou extinção do contrato [DL 84/2021: n.º 1 do art.º 12 e art.º 15].
10. E após a comunicação ao fornecedor da não conformidade, poderia o consumidor exercer o seu direito nos dois anos subsequentes à aludida comunicação [DL 84/2021: n.º 1 do art.º 17].
EM CONCLUSÃO
a. Tratando-se de contrato havido por fora de estabelecimento, tem de obedecer à forma legal prescrita, isto é, tem de constar de escrito particular [cfr. n.º 4 supra].
b. A lei obriga a que seja entregue um exemplar do contrato ao consumidor [idem].
c. Nestes casos há sempre um período de reflexão dentro do qual o consumidor pode retractar-se: se a cláusula constar do contrato, 14 dias; ser não constar: 12 meses que se seguem aos tais 14 dias [cfr. n.ºs 7 e 8 supra].
d. Se não for observada a forma legal prescrita, o contrato é nulo de pleno direito [cfr. n.º 5 supra].
e. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal [cfr. n.º 6 supra].
f. Se o contrato fosse válido, disporia de uma garantia legal de três anos, podendo o consumidor exercer os seus direitos no lapso de dois anos após comunicação da não conformidade ao fornecedor [cfr. n.ºs 9 e 10 supra].
Este é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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