Diogo Cabrita, médico
(in “Opinião ‘As Beiras, Coimbra, 20 de Abril de 2024)
Um jovem contou no programa da antena 1 “portugueses no mundo”, como é a sua vida na China, dependente de um telemóvel.
O dinheiro como objecto praticamente desapareceu e se queremos um bilhete de metropolitano, temos uma aplicação, para um restaurante, outra aplicação, para o táxi, nova aplicação, para entrar no prédio há dependência de outra aplicação, ou de um registo biométrico. Somos controlados no tempo gasto, na presença nos espaços e na actividade de compras ou de ócio.
O telemóvel é agora um porta-moedas, um bilhete de identidade e uma chave. Por acaso também regista fotos, permite filmes e jogos e também acesso à internet e a telefonar. Tendo localizadores e mecanismos de orientação, o telefone é agora o que garante a nossa cidadania vigiada.
Estamos protegidos pois ele indica quem se aproxima, e escolhe os encontros que desejamos ter. O telemóvel é uma rede de encontros, é uma forma de negociar e sobretudo uma fonte de informação.
O jovem gostava, e achava que as aplicações, que só são disponibilizadas em chinês, são amigas do utilizador, fáceis de perceber, e de interiorizar, mesmo não conhecendo a língua.
Do ponto de vista conceptual estamos perante um telemóvel que nos ajuda a orientar, que nos garante não esquecer a medicação, que nos relaciona com sistemas de segurança, que nos identifica na relação institucional.
Associado às pulseiras, que hoje parecem relógios, o telemóvel é um analista de saúde registando pulsações, glicemias, pO2. Os telemóveis estão, portanto, além da privacidade, e convertem-se em nós mesmos. Eles interligam-se com os carros, com a televisão, com a luz de casa, e permitem abrir os estores e persianas, mesmo quando vamos de férias.
A tecnologia invade o nosso quotidiano e começa a ser uma limitação da cidadania infoexcluída.
Na China o poder lembrou-se de utilizar isto tudo para catalogar a cidadania e pontuar as pessoas em níveis de qualidade. Podemos ser multados, repreendidos, mudados de emprego se os pontos obtidos são inadequados. O protesto ou o desvio da norma paga-se em retirada de pontuação. O Estado manda e tu obedeces. A sociedade caminha para uma mutação uniformizada, previsível, redutora de riscos, indutora de segurança, obsessiva de rotinas e normalização.
Como sempre, há coisas boas e más. Se a esta vigilância corresponder uma distribuição igualitária de bens e riqueza, se com ela houver igualdade de acesso à saúde e educação, se as pessoas ficarem mais, forem induzidas para estilos de vida saudáveis, com endorfinas sempre em alta, sentem-se felizes e são autómatos a quem se pode dar a droga da felicidade permanente. A “matrix” é pois uma escolha à nossa frente.
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