DO DIÁRIO “AS BEIRAS” DE HOJE,
02 DE JANEIRO DE 2024:
Do Presidente do Tribunal Arbitral de Coimbra, Dr. Victoriano Nazareth, a carta que se nos dirigiu, na rubrica Cartas ao Leitor, subordinada ao título
“Fundos de litigância”.
Eis o seu teor:
Senhor Diretor,
Ex.mo Sr. Professor Mário Frota
Após leitura do seu artigo, do passado dia dois, intitulado “Os Fundos-abutres...”, em que V. Exa., além de opinar sobre o financiamento das acções colectivas indemnizatórias por parte dos chamados Litigation Funds, tece algumas considerações sobre a legitimidade de tal procedimento, atrevi-me a escrever o seguinte.
Porque foi visada uma instituição que represento, a Ius Omnibus, senti obrigação de me pronunciar, que mais não seja, em defesa da honra de uma associação europeia reconhecidamente competente. Já tive ocasião de lhe fazer chegar, pessoalmente, algumas das informações que rebatem algumas das suas “verdades”, durante a singela, bonita, significante e merecidíssima homenagem que, a Escola de Tecnologia e Gestão/Leiria entenderam prestar-lhe.
Mas, voltando ao nosso assunto, eu nunca poderia deixar passar em claro, coisas que V. Exa. se dignou escrever como:
“Os Fundos-abutres inquinam as acções colectivas: advogados ao serviço de ínvios interesses”.
Não haverá confusão?
Os fundos-abutres não são aqueles que compram empresas em dificuldades ao desbarato para depois as venderem por bom preço?
Escreveu V. Exª. que uma terceira entidade, que não é parte da acção, goza de prerrogativas relativas à condução do processo.
Peço imensa desculpa, mas informo o Sr. Professor e quem nos lê, que, no que diz respeito ao trabalho da Ius Omnibus, nunca vi que as entidades financiadoras tivessem acesso ao processo, condicionassem a informação, controlassem a escolha dos mandatários, interviessem no objecto da acção, obrigassem à discussão prévia de decisões ou exigissem estar presentes nas audiências.
Connosco, afianço-lhe, nunca nada disso se passou. Não me parece estar em causa a livre escolha dos advogados. Não me pronuncio quanto à violação ou não do Estatuto da Ordem, pois não sendo eu advogado, não vou meter foice em seara alheia.
Não estará o Sr. Professor mal informado?
O condicionamento da escolha dos advogados pode ser que aconteça noutras paragens, ou com outras instituições, mas no que toca ao trabalho desenvolvido pela Ius Omnibus, posso afiançar-lhe que isso nunca aconteceu.
E, já agora, devo também informar que somos nós que submetemos aos fundos de litigância as nossas propostas de financiamento e que escolhemos os nossos advogados.
Sr. Professor Mário Frota, movendo-nos, a ambos, a defesa dos consumidores, não ficaria descansado se não melhorasse algumas informações menos precisas do seu texto.
Victoriano Nazareth,
presidente do Tribunal Arbitral de Coimbra”
Estes os termos da resposta que presidente emérito da apDC, Prof. Mário Frota carreou ao director do diário ‘As Beiras,, Dr. Agostinho Franklin:
Exm.º Senhor Director
O presidente do Tribunal Arbitral de Coimbra dirige-se-nos, nas Cartas ao Leitor, na edição de 02 de Janeiro em curso, em defesa de uma instituição que diz representar e não é, decerto, o Tribunal Arbitral, em termos que talvez se não possam retirar do escrito que nesse prestigioso periódico fizémos publicar oportunamente.
Para confronto, eis o seu teor:
“Os Fundos-abutres inquinam as acções colectivas: advogados ao serviço de ínvios interesses?
De um advogado do Porto:
“Podem os advogados assumir o patrocínio de acções colectivas subvencionadas por determinados Fundos que de todo os subordinam a suas ordens e instruções, limitando a direcção do processo para que foram mandatados por instituição legitimada para as instaurar?”
Ponderando, cumpre responder:
1. O tema é actual e prende-se com o financiamento por terceiros das acções colectivas indemnizatórias que ora pululam, entre nós, mormente no Tribunal da Concorrência, em Santarém.
2. Uma sociedade de advogados solicitara já parecer ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados acerca da “compatibilidade do exercício da advocacia e, em particular do patrocínio forense, quando o financiamento de uma acção judicial e dos honorários do mandatário da entidade que inicia a acção são exclusivamente assegurados por uma terceira entidade, que não é parte na acção, gozando tal entidade de prerrogativas relativas à condução do processo judicial, designadamente no que respeita ao acesso ao processo, ao direito à informação, ao controlo da escolha dos mandatários, à possibilidade de transigir quanto ao objecto da acção, à discussão prévia de certas decisões, ao direito de estar presente em audiências e à derrogação do sigilo profissional.”
3. A apreciação do Conselho Geral não é nada lisonjeira para os advogados que assumem, nessas condições, um tal patrocínio: “ressalta de imediato uma violação clara e inequívoca do artigo 92 do Estatuto da Ordem dos Advogados. Na verdade a desvinculação ao Sigilo Profissional não está na livre disposição do advogado e apenas pode ser dispensado mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o Bastonário, …, e em condições muito excepcionais, nos termos do artigo 4.º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
4. Ademais, pondera o Conselho, a Cláusula 4.6, do “Acordo de Financiamento” sub judice viola o artigo 67, n° 2, do EOA quanto ao princípio da livre escolha do mandatário, na exacta medida em que condiciona a escolha de mandatário pela Autora a uma entidade terceira.
5. “É igualmente violado o artigo 89 do EOA, no que respeita ao dever de independência do advogado, quando nas Cláusulas 4.2; 4.3; 4.4 e 4.5 do “Acordo de Financiamento” se impõem determinadas obrigações de gestão processual, que deveriam estar exclusivamente na esfera processual do advogado que lidera o processo, e que cerceiam e condicionam a sua autonomia técnica.”
6. “…Mais se diga, e numa perspectiva jurídico-constitucional, que estes contratos, porque comportam um exercício abusivo do direito de acesso aos tribunais, nomeadamente do direito fundamental de acção popular, encerram um vínculo contratual contrário à lei constitucional.”
7. “E por isso, por serem violadores de lei, são nulos, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso.”
8. O parecer cita um escrito de Paulo Otero [“Da dimensão constitucional dos acordos de financiamento … acções populares indemnizatórias: um problema de abuso de direitos fundamentais”] em que o autor propugna a inconstitucionalidade de tais acordos.
9. A admissibilidade dos acordos de financiamento por terceiros não é pacífica entre nós, como se infere de sucessivas posições assumidas, nomeadamente por jurisconsultos nacionais em acção pendente [Jus Omnibus versus Mastercard] no Tribunal da Concorrência, da Regulação e Supervisão.
10. Propendem para a admissibilidade de um tal pacto Carlos Blanco de Morais, Mariana Melo Egídio, Paula Costa e Silva e Nuno Trigo Reis, Paulo Paes Marques e Jorge Reis Morais, conquanto Gomes Canotilho, Jónatas Machado e Malheiro de Magalhães, de par com Paulo Otero, se situem na trincheira oposta.
EM CONCLUSÃO
a. Os acordos que os advogados vêm firmando com os Fundos de Financiamento das acções colectivas violam um sem número de regras do Estatuto da O.A. (art.ºs 67, n.º 2, 89 e 92).
b. A Ordem tende a considerar que tais acordos são nulos porque feridos de inconstitucionalidade.
c. A doutrina divide-se, porém, sobre a matéria, aguardando-se que a Lei da Acção Colectiva Europeia venha a lume para saber qual a posição do legislador português a tal propósito, já que de modo expresso não há lei que a proíba, como nada há que a autorize.”
…..
Nada resulta do que precede, ao que se nos afigura, susceptível de se inferir que o signatário haja atingido a honorabilidade seja de que instituição for nem se mostre a tal propósito ‘mal informado’…
O texto é, em si, revelador da equidistância e do rigor que pomos no que dizemos e escrevemos.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO -, Portugal
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