“Um consumidor celebrara um contrato de locação financeira de um automóvel ligeiro pretende. Pretende, nos termos do contrato, ficar com o veículo. Mas por se tratar de uma compra antecedida de locação financeira, o locador-vendedor, instado, já se pronunciou, asseverando que, em situações destas, não poderá de nenhum modo o veículo beneficiar de uma qualquer garantia por se tratar já de um bem usado.”
Apreciada a factualidade, cumpre emitir opinião:
1. Contrato de locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”
2. A Lei da Locação Financeira (LLF) diz, porém, no seu artigo 14 (sob a epígrafe “despesas”) que “salvo estipulação em contrário, as despesas de reparação do bem locado… ficam a cargo do locatário”: no silêncio do contrato (a não houver cláusula em contrário) as despesas de reparação, por exemplo, ficariam, pois, a cargo do locatário-consumidor.
3. Tal disposição da LLF esbarra na Lei das Garantias dos Bens de Consumo (LGBC), aplicável também à locação: “[A lei] é, ainda, aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo” (DL 67/2003: n.º 2 do art.º 1.º - A).
4. No entanto, a haver eventual colisão de normas prevalecem sempre as da LGBC de 2003 sobre as da LLF que remonta a 1995.
5. A LGBC prevalece, designadamente, no silêncio do contrato quanto a despesas de reparação do bem enquanto a relação contratual durar, tanto mais que, em contraponto com a LLF, a Lei das Garantias reveste natureza imperativa [contra a natureza supletiva (que só se aplica se os contraentes não pactuarem outra coisa) da LLF].
6. Sob a epígrafe “imperatividade” estabelece o art.º 10.º da LGBC que “sem prejuízo do regime das [condições gerais dos contratos], é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor...”
7. Operando-se a transmissão da propriedade da coisa para o locatário-consumidor, as regras que conformam a LGBC aplicar-se-ão sem excepção: tratando-se de coisa móvel usada “o prazo de dois anos de garantia” pode ser reduzido a um ano por acordo das partes (DL 67/2003: n.º 2 do art.º 5.º).
8. E, ainda no quadro da lei actual, a não conformidade terá de ser denunciada ao locador-vendedor no lapso de sessenta dias e o prazo para o exercício de qualquer dos direitos conferidos (reparação, substituição, redução adequada do preço ou extinção do contrato com justa causa, com a devolução da coisa e a restituição do preço) é de dois anos.
9. Nos termos da lei ainda em vigor, não há qualquer hierarquia rígida na adopção dos (ou no recurso aos) enunciados remédios (primeiro a reparação, depois a substituição se, entretanto, a reparação for excessivamente onerosa ou se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, e por aí em diante…).
10. Por conseguinte, não há, na circunstância, qualquer objecção, pelo contrário, a que se aplique a LGBC (em vigor à data em que houver de recorrer aos seus termos) numa locação-venda, tão logo a transmissão da propriedade da coisa, por meio do contrato de compra e venda, venha a ocorrer: donde, ter de ser assegurada a garantia de dois (2) anos, como se de bem usado se tratasse (como é o caso), podendo por acordo fixar-se tal garantia até 1 ano.
EM CONCLUSÃO:
a. A LGBC aplica-se também à Locação Financeira.
b. Mesmo no silêncio do contrato, i. é, se não houver cláusula em contrário, é ao locador que compete assegurar a conformidade do bem, não sendo lícito transfira tal responsabilidade, nos termos da garantia legal, para o locatário-consumidor
c. Em caso de venda do bem locado, o locador-vendedor tem de assegurar a garantia legal, sem mais, ou negociá-la com o locatário-comprador até 1 ano.
Mário Frota
Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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