sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

GARANTIAS DE COISAS MÓVEIS: reparar primeiro, substituir depois?…

(Ainda à Luz da Lei Antiga)

“Levei um equipamento, no período da garantia, à empresa em que o adquiri: funcionamento sumamente deficiente, a não proporcionar temperaturas de conforto, contra o que seria normal.

Surpreendeu-me o facto de me dizerem com toda a convicção que não poderia pretender a troca do aparelho, que teria de ir para a fábrica para reparação. Só se a reparação fosse inviável é que se pensaria na troca.  Será assim?”

 

Cumpre apreciar a situação descrita para, de seguida, nos pronunciarmos sobre a justeza dos seus termos.

Em caso de não conformidade da coisa com o contrato, os remédios que a lei prevê são os da:

. reparação

. substituição

. redução adequada do preço

. extinção do contrato (com a devolução da coisa e a restituição do preço).

A opção pelo remédio é direito do consumidor. Não do fornecedor.

Com um limite, porém: “salvo se tal for impossível ou constituir abuso de direito”.

E o que é, afinal, o abuso de direito?

Diz a lei que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Se a o “defeito” for de pouca monta, susceptível de reparação, excede o seu direito quem pretenda intolerantemente a troca ou a extinção do contrato.

Se o carro novo tiver uma escova do pára-brisas deficiente, não se afigura lícito exija o consumidor a substituição do veículo. Menos ainda que ponha termo ao contrato.

Se se tiver partido uma das rodas do aspirador, a simples substituição poderá ser abusiva: basta que se substitua a peça avariada. E, assim, sucessivamente...

E não há que obedecer a nenhuma graduação ou hierarquização dos remédios. Ou seja, não se começa por uma tentativa de reparação que, a não ser bem sucedida, obrigue à substituição e, só no limite, vencida toda a escala, é que se porá termo ao contrato.

Ao contrário do que entendeu já o Supremo Tribunal de Justiça pelo punho do Conselheiro Fonseca Ramos (13 de Dezembro de 2007), menos adequadamente, porém:

“O comprador de coisa defeituosa pode, por esta ordem, exigir do fornecedor / vendedor:

1.º - a reparação da coisa;

2.º - a sua substituição;

3.º - a redução do preço ou a resolução do contrato, conquanto exerça esse direito, respeitando o prazo de caducidade - art.º 12.º da LDC.”

Recentemente, da Relação de Guimarães, por acórdão de 20 de Fevereiro de 2020, votado por unanimidade, pela pena do desembargador Jorge Teixeira decretou, à revelia de uma fidedigna interpretação das regras e da doutrina, considerada, a todas as luzes, consentânea com o sentido e alcance da lei, algo de estranho:

I – “Os direitos à reparação ou à substituição previstos no artigo 914 do Código Civil – e também no artigo 12, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que veio estabelecer «o regime legal aplicável à defesa dos consumidores» – não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequência lógica.

II – Assim, o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e, preferencialmente, a via da reposição da conformidade devida, pela reparação ou substituição da coisa, sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato.

III – Isto porque, embora a lei (art.º 5.º do DL n.º 67/2003 ) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, numa interpretação conforme a Directiva (Directiva nº 1999/44/CE, de 25/05 ), há prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “aticização da escolha” através do princípio da boa-fé, sendo que o art.º 4º nº 5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito.”

("Aticização" ou "eticização"? É que "aticização" se prende com a "elegância e delicadeza (de estilo)", distinta decerto da "eticização", conduta regida por princípios éticos aparelhados, isso sim, pela cláusula geral da boa-fé.)

["Aticismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/aticismo (consultado em 02-12-2021)].

[Esqueceu-se o ilustre Magistrado (mais os seus pares) que a directiva é minimalista, consentindo uma tutela mais protectiva dos consumidores e que os direitos anteriormente consignados na LDC o eram já, nesse particular, mais vantajosos que os que a directiva europeia veio a consagrar]* .

Ao invés, Gaito das Neves, da Relação de Évora, pôs os pontos nos ii, ao dizer:

“Resulta do artigo 12 n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que perante a venda de uma coisa defeituosa, o consumidor pode escolher o remédio que mais lhe convém, sem qualquer ordem sucessória: a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço, a resolução do contrato.”

Aliás, o Conselheiro João Camilo, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de Maio de 2015, numa sucessão de reparações sem êxito, admitiu – e bem - que o consumidor podia desde logo fazer cessar o contrato sem roçar o “abuso do direito”:

“ Tratando-se de compra e venda de um automóvel novo de gama média / alta que após várias substituições de embraiagem, de software e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução (extinção) do contrato, sem incorrer em abuso de direito.”

Abusa do direito, isso sim, o fornecedor que esgrime com o consumidor os remédios, impondo uma reparação quando o consumidor pretende fundadamente a substituição ou o fim do contrato com as consequências daí resultantes.

Quer-se crêr que por ignorância dos gestores e deficiente preparação dos trabalhadores, vêm sendo denegados direitos com consequências sumamente gravosas para os consumidores.

Seria conveniente se preparassem adequadamente para bem poderem servir os clientes.

 

 

(Agora à Luz da Lei Nova)

As coisas mudarão, porém, em relação aos novos contratos, no dia 1.º de Janeiro de 2022.

A Lei Nova (DL 84/2021, de 18 de Outubro) estabelece, com efeito, que

"O consumidor pode escolher entre a reparação ou a substituição do bem, salvo se o meio escolhido para a reposição da conformidade for impossível ou, em comparação com o outro meio, impuser ao [fornecedor] custos desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo:

a) O valor que os bens teriam se não se verificasse a falta de conformidade;

b) A relevância da falta de conformidade; e

c) A possibilidade de recurso ao meio de reposição da conformidade alternativo sem inconvenientes significativos para o consumidor” (n.º 2 do art.º 15).

O [fornecedor] pode recusar repor a conformidade dos bens se a reparação ou a substituição forem impossíveis ou impuserem custos que sejam desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo as que são mencionadas nas alíneas a) e b) do número anterior (n.º 3 do art.º 15).

Já do preâmbulo da Lei Nova ressalta exactamente a noção de que se operou uma inversão na não hierarquização dos remédios:

"Ao contrário do previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na sua redacção actual, que não estabelecia qualquer hierarquia de direitos em caso de não conformidade dos bens — reconhecendo ao consumidor um direito de escolha entre a reparação do bem, a substituição do bem, a redução do preço ou a resolução do contrato — o presente decreto-lei incorpora a solução da Directiva que aqui se transpõe, a qual prevê os mesmos direitos, embora submetendo-os a diferentes patamares de precedência. Trata-se, pois, de matéria sujeita ao princípio da harmonização máxima, que impede o legislador nacional de divergir da norma europeia.

Neste enquadramento, em caso de não conformidade do bem, o consumidor tem o direito à «reposição da conformidade», através da reparação ou da substituição do bem, à redução do preço e à resolução do contrato, estabelecendo-se as condições e requisitos aplicáveis para cada um destes meios."

Por conseguinte, o espírito do acórdão, em rigor desajustado no momento em que o ilustre magistrado o lavrara, acaba por transluzir o que da Lei Nova emerge (sem que eventualmente o suspeitasse e, menos ainda, o lobrigasse no corpo e no regime da directiva de que procede a lei que vigorará a partir de Janeiro p.º f.º).

 

Que se registe o facto.

 

Mário Frota

apDC – DIREITO DO CONSUMO - Coimbra

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* Do preâmbulo do DL 67/2003, que transpôs a Directiva 1999/44/CE, consta, designadamente, e tal parece escapar aos julgadores:

"Preocupação central que se procurou ter sempre em vista foi a de evitar que a transposição da directiva pudesse ter como consequência a diminuição do nível de protecção já hoje reconhecido entre nós ao consumidor. Assim, as soluções actualmente previstas na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, mantêm-se, designadamente o conjunto de direitos reconhecidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa."

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