DAS RESOLUÇÕES DO PARLAMENTO EUROPEU
À PROPOSTA DE DIRECTIVA
‘REGRAS COMUNS [TENDENTES] À REPARAÇÃO DE
BENS’
Mário Frota
Fundador e primeiro
presidente da AIDC/IACL – Associação Internacional de Direito do Consumo
I
As Resoluções do Parlamento Europeu
1.
Os ‘recados’ do Parlamento Europeu à
Comissão Europeia em ordem a um ‘direito à reparação’: as sucessivas resoluções
O Parlamento Europeu fez-se intérprete de uma aspiração
geral ao pretender traduzir os Objectivos do Milénio para o amplo domínio da
sustentabilidade dos produtos de consumo: e exprimiu-a em ensejos vários, consubstanciada
nas Resoluções de 04 de Julho de 2017, 25 de Novembro de 2020 e 07 de Abril de
2022, ante os retardamentos detectados nas iniciativas legiferantes da Comissão
Europeia.
Em 2017, “O Parlamento Europeu instou a Comissão Europeia a
eleger a reparação dos produtos como
alvo primacial das suas acções:
incentivando
e propiciando um sem-número de medidas tendentes a tornar a opção “reparação” como mais atractiva,
pelo recurso a técnicas de construção e materiais
passíveis de promover a reparação dos
bens ou a fácil substituição dos
seus componentes com o menor dispêndio possível; recusando veementemente que os
consumidores se tornem escravos de um interminável ciclo de reparações e de
manutenção de bens inaproveitáveis,
promovendo,
em caso de uma não conformidade recorrente
ou de um período de reparação superior a
um mês, a prorrogação da garantia por período equivalente ao tempo
indispensável para a reparação,
apelando a
que as partes cruciais para o funcionamento do produto sejam substituíveis e
reparáveis, fazendo da susceptibilidade de reparação do produto um dos seus
elementos essenciais, quando benéfico, e desencorajando-o, a menos que tal se
justifique por razões de segurança.
Tal desideratum reiterou-o
em 25 de Novembro de 2020:
• A outorga aos consumidores de um «direito à reparação»
• A promoção da reparação em vez da substituição
• A normalização das peças sobresselentes susceptível de
promover a interoperabilidade e a inovação
• O acesso gratuito às informações necessárias para a
reparação e a manutenção
• Um cacharolete de informações a cargo dos produtores: disponibilidade
de peças sobresselentes, actualizações de «software» e a faculdade de reparação
de qualquer produto…
O período mínimo obrigatório para o fornecimento de peças
sobresselentes em consonância com a duração de vida estimada do produto após a
colocação no mercado da última unidade
• Garantia de um preço razoável para as peças sobresselentes
• Garantia legal para peças substituídas por reparador
profissional quando os produtos já não beneficiarem da garantia ordinária
• Criação de incentivos, como o «bónus do artesão»,
susceptíveis de promover as reparações, em particular após o termo da garantia
legal.
E dele se fez eco de modo insistente em 2022, instando
nomeadamente à
• Reparação proporcionada numa concertação de princípios: o
da sustentabilidade, o dos interesses económicos e o da economia social de
mercado altamente competitiva:
Acesso a
peças sobresselentes e a manuais de instruções
A quebra de
sigilo e a transparência de processos no que tange à composição de produtos,
diagnóstico e reparação
Obstar à
obsolescência, cominar, ao menos, como ilícitos de mera ordenação social
práticas de um tal jaez.
Um instrumento normativo em sede de Concepção Ecológica mais abarcante, com maior
gama de produtos, que não circunscritos aos que relevam das energias
• Eleger a informação como algo de primacial
• Conferir papel fundamental ao rótulo ecológico da UE no
incentivo à adopção, por parte da indústria, de políticas de rotulagem que
transmitam aos consumidores informações fundamentais do ciclo de vida dos
produtos
• Prover a incentivos financeiros para os serviços de
reparação, por forma a tornar a reparação conveniente e atractiva para reforço
dos direitos dos consumidores e das garantias para uma utilização mais
prolongada dos bens.
Um ror de evocações, que quase caíram em saco roto!
2.
O
iter legislativo
Muita água se precipitou, entretanto, pontes abaixo até que -
sob a forma de Proposta de Directiva - a Comissão Europeia se permitiu trazer a
lume um texto: a 22 de Março pretérito.
Finalmente… algo acontece, nos desacertos com que legisladores
menos experimentados e determinados nos brindam. Conquanto de distintos
quadrantes houvesse a percepção, aliás, infundada, de que a União Europeia
consagrara já, desde 2019, de plano,
um direito universal à “reparação”.
Estatuir em matéria de assistência pós-venda, de modo
restrito, em termos de disponibilidade de sobressalentes por 7, 10 anos de
produtos que mal se contam pelos dedos de uma só mão, como ocorreu com
Regulamentos de Execução da Comissão Europeia, é algo que de todo se não confunde
com a outorga de um autêntico “direito à reparação”, vero e próprio,
com as consequências que de um tal direito emergem e terão de ser doravante convenientemente
esquadrinhadas.
II
A PROPOSTA DE DIRECTIVA DE 22 MARÇO DE
23
1.
A obrigação de reparação que pende
sobre produtores
O Regulamento ‘Ecodesign
de
Produtos Sustentáveis’, ora na forja no Parlamento Europeu, “estabelece,
em particular, requisitos do lado da oferta que perseguem o objectivo de um design de produto mais sustentável na
fase de produção”, ao passo que a Directiva ‘Empoderamento dos Consumidores para a Transição Ecológica’, de
análogo modo em preparação, definirá os requisitos do lado da procura, assegurando
uma mais adequada informação sobre a durabilidade e reparabilidade dos bens no
ponto de venda, susceptível permitir aos consumidores decisões esclarecidas em
torno de uma qualquer compra sustentável.
O instrumento de que
por último se trata prossegue destarte os objectivos, no quadro do European
Green Deal, de promover um consumo mais sustentável, uma economia
circular, na essência e por definição, e a transição ecológica versada num dado número de planos, projectos e programas
adoptados na União Europeia, em processo complexo e, por vezes, fonte de fundas
perturbações.
A Proposta de
Directiva, sob a consigna “Regras Comuns
‘Tendentes’ à Reparação dos Bens”, consagra, enfim, o denominado “direito à reparação” por que há tanto
se clama: e disso são exemplo recorrente os sucessivos instrumentos no passo
precedente recortados....
Nela se define que
os Estados assegurarão, a rogo do consumidor, que o produtor repare,
gratuitamente ou contra retribuição ou outra qualquer contrapartida, os bens
para os quais e na medida em que os requisitos de reparação se achem previstos
em actos jurídicos da União.
A disciplina vertida
na directiva não é susceptível de embargar a liberdade de os Estados regularem a se os contratos de prestação de serviços de reparação de todo não
previstos pelo direito da União.
Os requisitos a que
a obrigação de reparação se submete incluirão
os que assegurem, ao abrigo de tais actos jurídicos, as operações nela
imbricadas.
Neles se inserirão,
entre outros, os constantes do quadro de
concepção ecológica, a que o Regulamento em perspectiva proverá, de molde a
abranger uma vasta gama de produtos, bem
como os desenvolvimentos futuros em qualquer outro domínio.
1.1.
Destrinça
conceitual entre o “direito de reparação” e o “direito à reparação”
De assinalar,
entretanto, que o “direito à reparação”
se não confunde com o “direito de
reparação” que emerge como um dos remédios em caso de não conformidade do
bem com o contrato, de harmonia com a Directiva
“Compra e Venda de Bens” de 20 de Maio de 2019 e da correspondente
translação normativa para o ordenamento jurídico pátrio, o Decreto-Lei n.º 84/2021,
de 18 de Outubro.
O “direito de reparação” figura no artigo
15 do diploma legal, por último assinalado, aí se estatuindo, no seu n.º 2, que
cabe ao consumidor:
“escolher
entre a reparação ou a substituição
do bem, salvo se o meio escolhido para a reposição da conformidade for
impossível ou, em comparação com o outro meio, impuser ao fornecedor custos
desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias…” (1)
Não se confunda, por
conseguinte, o direito que emerge
das garantias dos bens de consumo [o de
reparação] do “direito à reparação” que inere a todo e qualquer bem de consumo,
nas coordenadas da sustentabilidade e como forma de tornar mais longevas as
coisas…
Aliás, em
decorrência da Directiva “Omnibus”,
a Lei-Quadro de Defesa do Consumidor, em vigor em Portugal, estatui no n.º 5 do
seu artigo 9.º que
“O consumidor tem direito à assistência
“pós-venda”, com incidência no fornecimento de peças e acessórios, pelo
período de duração média normal dos produtos fornecidos.” (2)
O ‘direito à reparação’ é particularmente
vincado nas Resoluções do Parlamento Europeu, sucessivamente editadas a 04 de
Julho de 2017, de 25 de Novembro de 2020 e 07 de Abril de 2022.
1.2.
Atenuações
ou exclusões
O produtor não será obrigado
a reparar os bens sempre que a reparação for impossível, à semelhança do que
ocorre, aliás, no quadro da Directiva “Compra
e Venda de Bens” e dos instrumentos transpositivos do direito nacional.
É lícito ao produtor
subcontratar a reparação por forma a cumprir a obrigação de reparação que sobre
si impende.
Se o produtor adstrito
à obrigação de reparar se não achar
estabelecido no Mercado Interior, transfere-se para o seu representante
autorizado a inerente obrigação.
Se não houver representante
autorizado na União, o importador em referência substituir-se-á ao produtor.
Não havendo
importador, incumbirá ao distribuidor a obrigação de reparação, de molde a que
os consumidores não sejam despojados dos seus direitos, na esteira do que
prescrevem inúmeros instrumentos com o selo da União.
1.3.
Especial
obrigação do produtor
Os produtores devem
assegurar que os reparadores independentes acedam a peças sobressalentes
Há que facultar-lhes
ainda o acesso a informações (aos
manuais com adequadas instruções) e a ferramentas indispensáveis aos trabalhos
de reparação (em conformidade com os actos jurídicos da União enumerados no
anexo, de que ora não cumpre curar).
1.4.
Informação
sobre obrigação de reparação
Os Estados-membros assegurarão
que os produtores informem os consumidores da obrigação de reparação que sobre si recai.
E que forneçam
informações sobre os serviços de reparação de forma facilmente acessível, clara
e compreensível, nomeadamente através da plataforma
em linha a que noutro passo se alude.
1.5.
Incumbências
da Comissão Europeia
A Comissão Europeia
fica habilitada a adoptar actos delegados por forma a que se opere a alteração
dos instrumentos em que se plasmem os bens que ao direito à reparação se submetem, actualizando a lista dos
competentes actos jurídicos com os requisitos de reparabilidade, à luz da
evolução legislativa observada.
2. Formulário
Europeu de Informação sobre Reparações
O Formulário Europeu de Informações sobre
Reparações deve estabelecer parâmetros-chave que influenciem as decisões do
consumidor ao considerar a possibilidade de reparar bens que se mostrem com
vícios, avarias ou defeitos.
A Directiva
estabelece um modelo de formato normalizado.
O formato padronizado
conferirá aos consumidores avaliem e comparem de modo simples os serviços: o formato
padronizado também deve propiciar o processo de fornecimento de informações
sobre serviços de reparação, em particular para micro, pequenas e médias
empresas prestadoras de serviços de reparação.
2.1.
O modelo
O Formulário Europeu de
Informações sobre Reparações especificará forma clara e compreensível as
condições em que a reparação se operará,
como segue:
§ A identidade do reparador;
§ O endereço geográfico em que o
reparador se acha estabelecido, bem como o número de telefone e o endereço de correio
electrónico e, se disponível, outros meios de comunicação em linha que permitam
contactos de forma forma rápida e eficiente;
§ o produto susceptível de ser reparado;
§ a natureza do vício, avaria ou defeito
e o tipo de reparação sugerido;
§ o preço ou, se o preço não puder ser
razoavelmente calculado de modo antecipado, a forma pela qual deve ser calculado e a revelação o preço máximo
para a reparação;
§ o tempo estimado necessário para
conclusão dos trabalhos;
§ a disponibilidade de bens de
substituição no decurso do lapso de tempo de reparação e os encargos devidos
para o efeito, se os houver;
§ o local de entrega dos bens para
reparação,
§ quando aplicável, a disponibilidade de
serviços auxiliares, como remoção, instalação e transporte, oferecidos pelo
reparador e os encargos devidos por tais serviços, se houver, para o
consumidor.
3. Plataforma
de Reparação em Linha
Cada um dos Estados-membros aparelhará, ao menos, uma plataforma em linha que permita aos
consumidores saber onde se estabelecem os reparadores.
A Plataforma
·
Congregará
as funções de pesquisa de bens, localização dos serviços de reparação, condições
de reparação, previsão do tempo necessário para o efeito, disponibilidade de
bens de substituição e o local de depósito do bem, condições acessórias de
serviços, incluindo remoção, instalação e transporte, para além dos padrões de
qualidade adoptados, europeus ou nacionais;
·
Nela
se solicitará o Formulário Europeu de
Informações sobre Reparações;
·
Assegurará
actualizações regulares de informações de contacto e serviços pelos
reparadores;
·
Revelará
a adesão às normas de qualidade europeias ou nacionais aplicáveis;
·
Garantirá
o acesso a pessoas vulneráveis, designadamente a portadoras de deficiência
·
Garantirá
ainda o acesso a sítios nacionais conectados ao Portal Digital Único edificado
sob Regulamento Europeu de 2018.
Os Estados são livres de decidir quais as oficinas de
reparação susceptíveis de se registar na plataforma em linha, desde que o
acesso o seja em condições de razoabilidade e não discriminação, em
conformidade com o direito vigente na União.
E asseguram que os operadores
económicos em condições de prestar tais serviços acedam de modo simples à
plataforma em linha.
Cumpre aos Estados
definir os termos da plataforma em linha, v.g.,
através do auto-registo ou da extracção a partir de bases de dados existentes
com o consentimento dos reparadores, ou impondo aos aspirantes ao registo, se
for o caso, uma qualquer taxa
susceptível de cobrir os custos de funcionamento da plataforma.
Para garantir uma
ampla escolha de serviços de reparação na plataforma, assegurarão que o acesso
se não limite a uma categoria específica de reparadores. Conquanto se lhes
apliquem os requisitos nacionais relativos, por hipótese, às qualificações
profissionais necessárias, cumpre assegurar que a plataforma se abra a todos os
reparadores que observem tais requisitos.
Os Estados serão
também livres de decidir se e em que medida as iniciativas de reparação no seio
da comunidade, como os cafés ou os clubes
de reparação “tipo mecânica
popular”, podem registar-se na plataforma, face às considerações de
segurança, quando relevante.
Tal possibilidade
deve ser presente de forma destacada na plataforma.
Para divulgar as
plataformas nacionais e facilitar o acesso a tal em toda a União, os Estados
assegurarão que a elas se aceda através de páginas Web nacionais conectadas ao
Portal Digital Único.
Para atrair os
consumidores para as plataformas, adoptar-se-ão medidas adequadas, a saber, as
da divulgação em sítios Web nacionais conexos ou apropriadas campanhas de
comunicação.
Eis o que cumpre, na
circunstância e, em primeira mão, revelar.
________________________________________
(1)
E,
no seu artigo 18, se pormenoriza o “modus
agendi”, a saber:
“…
2. A reparação…
do bem é efectuada:
a) A título gratuito;
b) Num prazo razoável a contar do momento em que o
[fornecedor] tenha sido informado pelo consumidor da [não] conformidade;
c) Sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta
a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina.
3. O prazo para
a reparação… não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza
e complexidade dos bens, a gravidade da [não] conformidade e o esforço
necessário para a conclusão da reparação… justifique um prazo superior.
4 — Em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um
prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de
quatro reparações, devendo o fornecedor, aquando da entrega do bem reparado,
transmitir ao consumidor essa informação.
5 — Quando a reparação exigir a remoção do bem que tenha
sido instalado de uma forma compatível com a sua natureza e finalidade antes de
a não conformidade se ter manifestado, a obrigação do profissional abrange a
remoção do bem não conforme e a instalação de bem reparado… , a suas expensas.
…”
(2)
Aliás, a Lei da “Compra e Venda de
Bens” de 18 de Outubro de 2021, em que se estatuem as garantias que lhes
inerem, contém, na versão actual, sob a epígrafe “serviço pós-venda e disponibilização de peças”, os regramentos que
sege:
“1 — Sem prejuízo do cumprimento dos deveres
inerentes à responsabilidade do profissional ou do produtor pela falta de
conformidade dos bens, o produtor é obrigado a disponibilizar as peças necessárias
à reparação dos bens adquiridos pelo consumidor, durante o prazo de 10 anos
após a colocação em mercado da última unidade do respectivo bem.
2 — A obrigação
prevista no número anterior não é aplicável a bens cuja obrigatoriedade de
disponibilização de peças esteja prevista em regulamentação da União Europeia
específica em matéria de concepção ecológica, a qual prevalece, nem a bens
perecíveis ou cuja natureza seja incompatível com o prazo referido no número
anterior.
3 — No caso de bens
móveis sujeitos a registo, o profissional deve, pelo período previsto no n.º 1,
garantir assistência pós-venda em condições de mercado adequadas.
4 — No momento da
celebração do contrato, o profissional deve informar o consumidor da existência
e duração da obrigação de disponibilização de peças aplicável e, no caso dos
bens móveis sujeitos a registo, da existência e duração do dever de garantia de
assistência pós-venda.”