(edição de segunda-feira, 02 de Outubro de 2023)
Independentemente da discussão em torno da constitucionalidade dos “acordos de financiamento por terceiros privados das acções colectivas”, o legislador nacional parece propugnar agora a tese de que tais compromissos não berram na paisagem jurídica pátria. Sobretudo, se a tal se antepuserem determinadas restrições.
Os defensores da tese da admissibilidade parece, no entanto, ignorarem algo que constitui, com efeito, clamorosa omissão legislativa.
A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, em obediência à Directiva 2003/8/CE, do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, sob a epígrafe “regras mínimas comuns relativas à assistência e ao apoio judiciário em matéria civil, comercial [e de consumo]”, prescreve numa das suas disposições (o n.º 3 do artigo 6.º ):
“1 - …
2 - A protecção jurídica é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão.
3 - Lei própria regulará os sistemas destinados à tutela dos interesses colectivos ou difusos e dos direitos só indirecta ou reflexamente lesados ou ameaçados de lesão.
4 - No caso de litígio transfronteiriço, em que os tribunais competentes pertençam a outro Estado da União Europeia, a protecção jurídica abrange ainda o apoio pré-contencioso e os encargos específicos decorrentes do carácter transfronteiriço do litígio, em termos a definir por lei.”
O facto é que de então para cá só o silêncio sobreveio.
E as tomadas de posição que vimos assumindo ao longo dos tempos não têm tido a devida ressonância nos corredores do poder.
Mas o legislador dá de barato, na transposição da Directiva Acções Colectivas (com nove meses de atraso face à data-limite para o efeito), que o ordenamento admite tal financiamento e, por conseguinte, limita-se a considerar, no artigo 10.º da Proposta de Lei 92/XV/1.ª (DAR – II série – A – de 02 de Junho pretérito) que se discutiu sexta-feira pretérita, em sessão plenária no Parlamento, um sem-número de medidas cautelares, a saber:
1.º O demandante da acção colectiva fornece ao tribunal cópia do acordo, com uma síntese financeira que enumere as fontes de onde promana o financiamento como suporte da acção colectiva…
2 .º O acordo de financiamento garantirá a independência do demandante e a ausência de conflitos de interesses.
3.º A independência afere-se pela liberdade de instaurar (a), desistir (da) ou transigir (na) acção em homenagem à tutela dos interesses em causa.
4.º Consequentemente, o financiador não pode impor ou impedir o demandante de agir com independência no decurso da acção, sendo nulas quaisquer cláusulas em contrário constantes de acordo ou apostilha.
5.º O acordo de financiamento não pode prever uma remuneração do financiador que exceda valor justo e proporcional, avaliado à luz das características e factores de risco da acção colectiva em causa e do preço de mercado de um tal financiamento (seja lá isso o que for…).
6.º São inadmissíveis acções colectivas suportadas por um qualquer financiador se, ao menos, um dos demandados for seu concorrente ou entidade dele dependente.
7 . Se ocorrer violação das regras precedentes, o tribunal convidará o demandante a, em dado lapso de tempo, recusar (ou fazer alterações a) o financiamento por forma a garantir o respeito pelas disposições de base: ao julgador cumprirá declarar a ilegitimidade processual activa do demandante se não forem observadas as preconizadas modificações.
8 . Se houver rejeição da legitimidade processual do demandante, em razão das promiscuidades subsistentes, tal não afectará os direitos dos titulares dos interesses na acção co-envolvidos.
Uma coisa é certa: o legislador português, pela vez primeira, considera tacitamente admissível o financiamento por terceiros privados, ao menos, das acções colectivas no ordenamento jurídico pátrio.
O que quer significar que se alivia destarte o Estado dos emergentes encargos e se obsta à criação, corolário lógico do acesso à justiça, de um Fundo de Direitos Colectivos, que outros ordenamentos criteriosa e laboriosamente instituíram em prol dos titulares de interesses individuais homogéneos, colectivos e difusos.
Eis o estado da questão em Portugal.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – Direito do Consumo, de Portugal
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