Para
poder tornar realidade as liberdades de circulação referidas — com
relação às quais, é necessário dizer, somente a primeira (de
mercadorias) é a que está em processo de consolidação —, o Mercosul
necessita apoiar-se em estruturas jurídicas sólidas que permitam o
cumprimento das finalidades propostas. Neste ponto, insere-se a
preocupação com o estabelecimento de normas destinadas a harmonizar a
legislação doméstica dos Estados, consoante determina o artigo 1º do
Tratado de Assunção, conforme o qual, o mercado comum também implica no
(...) "compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações
nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de
integração".
Com relação ao tema, tal como já expressamos em outra oportunidade, "não
se encontra, no tratado constitutivo, nenhuma referência expressa ou
direta à harmonização legislativa em matéria de direito do consumidor,
constando, tão somente, uma menção genérica sobre a ampliação 'da oferta
e qualidade de bens e serviços disponíveis, a fim de melhorar as
condições de vida dos habitantes', inserida no inciso 7º do Preâmbulo do
Tratado de Assunção. Do mesmo modo, o art. 4º do Tratado referido, que
impõe a necessidade de organização da estrutura geral de concorrência e
transações comerciais na região, tampouco se ocupa da matéria referida,
ainda que, obrigatoriamente, abarque de forma indireta as relações de
consumo. De qualquer forma, como se observa, o certo é que o Tratado de
Assunção, de 1991, não dirigiu sua atenção à proteção do consumidor, mas
tão somente à necessidade do estabelecimento de normas e políticas
macroeconômicas destinadas a colocar em funcionamento o bloco" [2].
Pese
ao exposto, ainda que o tratado fundador tenha omitido a necessidade de
se conferir proteção ao consumidor mercosulino, como sendo o principal
agente ou destinatário da integração, responsável inclusive pelo regular
andamento do comércio intra bloco, já que sem consumo, não há
estímulo à circulação internacional das mercadorias, desde 23 de abril
de 1994, quando se deu a assinatura da Declaração Conjunta dos Ministros
de Economia, deu-se o pontapé inicial para o início do processo de
harmonização legislativa neste âmbito, com o intuito aproximar o direito
interno dos Estados em busca de um nível elevado de proteção ao
consumidor, conforme as orientações e padrões internacionais.
Para
levar a cabo esse desiderato, em 15 de fevereiro de 1995 criou-se o
Comitê Técnico nº 7 (CT nº 7), composto pelas autoridades nacionais de
defesa do consumidor dos Estados partes, responsável pela criação de
propostas de harmonização legislativa e de uniformização de políticas
públicas, visando desenvolver a proteção dos consumidores no Mercosul e,
com isso, contribuir para a consolidação do mercado comum.
De
1995 até a presente data, muitas propostas de harmonização normativa
foram realizadas a partir do trabalho do CT nº 7, várias das quais se
converteram em resoluções aprovadas pelo Grupo Mercado Comum (GMC) ou em
Decisões aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum (CMC).
É
justamente com relação a esse trabalho de harmonização de legislações
que cabe trazer à colação o Projeto de Resolução que vem sendo discutido
no âmbito do CT nº 7 sobre "Proteção do Consumidor contra o
Superendividamento" [3], cuja primeira versão foi elaborada pela presidência pro tempore Argentina e apresentada em 26 de março de 2021, em ocasião da XCVI Reunião Ordinária do CT nº 7, levada a cabo em Buenos Aires.
O
projeto, inspirado nas consequências advindas do endividamento
excessivo dos consumidores, observadas sobretudo no período da pandemia
de Covid-19, no seu artigo 2º, qualifica o superendividamento do
consumidor como sendo a situação caracterizada pela impossibilidade de
cumprir com as obrigações exigíveis ou de imediata exigibilidade, sem
comprometer o acesso e o gozo de bens essenciais. Nesse sentido,
determina que os Estados partes do Mercosul devem estabelecer políticas
de prevenção, tratamento e mitigação do superendividamento, à luz de
princípios que deverão guiar a implementação destas medidas, tanto de
ordem judicial quanto administrativa, visando superar a insolvência do
consumidor. Entre eles, encontram-se: o respeito à dignidade da pessoa
humana e da família; o crédito responsável; a proteção especial do
consumidor em situação de hipervulnerabilidade; a boa fé; a prevenção de
riscos; o imediatismo, a simplicidade, a celeridade e o baixo custo dos
procedimentos, entre outros (artigo 7º). Para tanto, os princípios
referidos deverão estar presentes nas ações que recaem sobretudo nos
fornecedores de crédito e nos Estados.
Com
relação aos fornecedores creditícios, o projeto mercosulino lhes impõe,
no seu artigo 3º, o respeito ao princípio do crédito responsável. Nesse
sentido, determina que estes deverão informar o consumidor acerca dos
alcances do compromisso patrimonial derivado do crédito solicitado,
levando em consideração os recursos existentes para afrontá-lo, a partir
de uma avaliação dos antecedentes creditícios e da solvência
patrimonial do consumidor. Essa análise deve ser realizada sem a
intermediação de métodos automatizados e deve resultar num
aconselhamento ao consumidor, abstendo-se o fornecedor de qualquer
prática que induza a parte vulnerável da relação de consumo a um
endividamento excessivo.
No
que toca aos Estados, o projeto determina que estes deverão adotar
medidas para a efetiva proteção dos consumidores de serviços
financeiros, por meio do desenvolvimento de campanhas de informação;
supervisão e regulação da publicidade, das práticas comerciais abusivas e
das cláusulas abusivas contidas nos contratos de financiamento; adoção
de mecanismos destinados a prevenir os riscos próprios do mercado de
crédito; e implementação de programas especiais para proteger
consumidores em situação de hipervulnerabilidade, como é o caso do
consumidor idoso ou analfabeto (artigo 4º).
Ainda,
no artigo 5º, o projeto aposta na educação financeira como instrumento
para empoderar o consumidor, determinando que os Estados partes do
Mercosul deverão incluir esse eixo temático nos planos gerais de
educação para o consumo, como forma de se incentivar a gestão razoável
da economia doméstica e a própria prevenção do superendividamento, sem
prejuízo de que se invista na informação ao consumidor como medida para
reduzir o estado de insolvência deste último (artigo 6º).
Como
é facilmente verificável, o projeto está voltado inteiramente à
prevenção do superendividamento, a partir de medidas e políticas
públicas que devem ser tomadas pelas instituições financeiras e pelos
Estados.
Pese
ao exposto, até a presente data, ainda não temos a aprovação do texto no
âmbito do CT nº 7, o qual, se aprovado, ainda deve ser submetido ao
GMC, órgão com capacidade decisória e com competência para a aprovação
de resoluções. E mais, depois de superadas essas fases, o texto
aprovado, ainda necessita ser internalizado ao ordenamento jurídico
doméstico de cada um dos Estados partes para finalmente poder ser
aplicado.
Diante
deste cenário, paira uma dúvida de óbvia resolução: não existem mais
consumidores superendividados na Argentina, no Brasil, no Paraguai e no
Uruguai, o que explicaria o descaso das delegações dos Estados com a
aprovação do texto proposto [4]?
Esta dúvida leva a outra: por que o Uruguai e o Brasil,
especificamente, ainda estão "deliberando" internamente em torno à
aprovação da proposta argentina [5]?
Especialmente no caso brasileiro, agora que temos, finalmente, a
aprovação da Lei do Superendividamento do Consumidor, Lei nº 14.181, de
1º de julho de 2021 (que foi aprovada alguns meses depois da propositura
do projeto mercosulino), não precisamos pensar nas hipóteses de
superendividamento do consumidor promovidas no âmbito do Mercosul,
considerando que o Brasil é um dos sócios fundadores do bloco econômico?
E no caso uruguaio, país que ainda não tem lei que regule o tema, não
seria a aprovação do Projeto de Resolução do CT nº 7, no âmbito do
Mercosul, uma fonte para impulsionar a adoção de norma interna destinada
a prevenir e tratar o superendividamento dos consumidores?
Parece
evidente que a aprovação do projeto mercosulino serviria de base para a
implementação de legislação doméstica sobre o superendividamento do
consumidor, no âmbito dos Estados partes que ainda não a possuem e que,
infelizmente, são a maioria. Nesse sentido, cabe destacar que a
Argentina [6] possui projetos de lei para regular o tema, assim como o Uruguai [7].
Já o Paraguai, nem sequer possui projeto normativo apresentado. Em
outras palavras, somente o Brasil possui legislação interna regulando o
endividamento excessivo do consumidor, o que também deveria estimular os
demais sócios a adotarem legislação na matéria.
Por
fim, fazer parte de um processo de integração regional significa
comprometer-se com a consecução de seus objetivos, em conjunto, em
sintonia com os demais Estados que o integram. Nesse âmbito, medidas
destinadas a proteger o consumidor, sobretudo para evitar que este e sua
família fiquem desprovidos do mínimo existencial para viver com
dignidade, são imprescindíveis para o próprio sucesso da integração e,
por conseguinte, para o desenvolvimento econômico da região.
[2]
VIEIRA, Luciane Klein. O MERCOSUL como foro de codificação em matéria
de direito do consumidor: estado da arte e perspectivas para o futuro.
In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; BRAGATO, Fernanda Frizzo
(Orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Mestrado e Doutorado.
Nº 15. São Leopoldo: Editora Karywa, 2019. p. 236.
[6]
Na Argentina, foram apresentados dois Projetos de Código de Defesa do
Consumidor, que incluem a questão do superendividamento, com regulações
bastante semelhantes. Trata-se dos Projetos reconhecidos como
"Expediente Nº 3143-D-2020", elaborado por uma Comissão de Juristas e
apresentado em 26 de junho de 2020, na Câmara de Deputados do Congresso
Nacional. O outro, que ingressou na mesma Casa Legislativa, toma parte
da proposta anterior, tendo recebido a designação de "Expediente Nº
5156-D-2020", apresentado em 30 de setembro de 2020. Ambos projetos
abordam a prevenção do superendividamento, a reabilitação financeira do
consumidor e de sua família, impulsando a renegociação da dívida
creditícia com as instituições financeiras. (JAPAZE,
María Belén. La protección de los consumidores sobreendeudados en el
MERCOSUR. Acciones del Comité Técnico nº 7. La regulación en los Estados
Parte. La situación en Argentina. In: MARQUES, Cláudia Lima; VIEIRA,
Luciane Klein; BAROCELLI, Sergio Sebastián (Dirs.) Los 30 años del
MERCOSUR: avances, retrocesos y desafíos en materia de protección al
consumidor. Buenos Aires: IJ Editores, 2021. Disponível em: https://latam.ijeditores.com/index.php?option=publicacion&idpublicacion=836. Acesso em: 15 set. 2023.)
[7]
O projeto de lei uruguaio foi apresentado pelo Senado do Congresso
Nacional, identificado como "Expediente nº 319/2020" sobre
"Procedimiento de reestructuración de deudas de personas físicas". O
projeto, que teve como base o modelo de regulação vigente na Nova
Zelândia, cria um procedimento judicial para reestruturar o passivo das
pessoas físicas, que deve ser precedido por um procedimento de
conciliação em sede administrativa. Nos termos do art. 2º do projeto, os
destinatários do procedimento especial referido serão os devedores de
boa-fé, que não sejam titulares de bens ou que o seu patrimônio esteja
composto por um único bem imóvel, com valor equivalente ao estabelecido
como bem de família, e/ou cujos ingressos anuais sejam inferiores à soma
de UI 120.000, o que equivaleria, hoje, a aproximadamente 17.800
dólares. (JAPAZE, María Belén. La
protección de los consumidores sobreendeudados en el MERCOSUR. Acciones
del Comité Técnico nº 7. La regulación en los Estados Parte. La
situación en Argentina. In: MARQUES, Cláudia Lima; VIEIRA, Luciane
Klein; BAROCELLI, Sergio Sebastián (Dirs.) Los 30 años del MERCOSUR:
avances, retrocesos y desafíos en materia de protección al consumidor. Buenos Aires: IJ Editores, 2021. Disponível em: https://latam.ijeditores.com/index.php?option=publicacion&idpublicacion=836. Acesso em: 15 set. 2023.)