“Só despertamos, em
geral, para determinados fenómenos quando somos tocados pelos seus termos.
O artigo de Fernanda
Câncio, no Diário de Notícias de 07 de Junho próximo passado, fruto de uma
desagradável experiência pessoal, teve, porém, o condão de despertar
consciências porque nem sempre os alertas das instituições autênticas,
autónomas e genuínas de consumidores fazem com que soem as campainhas da
reacção e desespero gerais.
Este palavrão [WAP Billing], com que se douram os
operadores dos serviços de comunicações electrónicas, para nos irem à bolsa de
forma, a um tempo, requintada e requentada, tem exactamente por fito esse
propósito: de grão em grão encher a mula ao vilão…
E o que é o tal WAP Billing para que nem os poderes se
achavam despertos e tanto disparate se disse, ao tempo, no Parlamento, na mais
crassa ignorância do que se acha vigente, em Portugal, em matéria de protecção
do consumidor?”.
Cumpre responder:
1.
Trata-se, por definição, de um
mecanismo que faculta aos consumidores a “aquisição de conteúdos digitais” a
partir de páginas WAP (Wireless Application Protocol),
directamente debitados na factura de serviço de acesso à Internet ou
descontados no respectivo saldo (no caso dos meios pré-pagos).
2.
No vertente caso, porém, é de um “serviço-surpresa” que se trata,
susceptível de ser debitado aos consumidores na factura dos serviços de
comunicações electrónicas, sem fundamento legal, por lhes ser ‘apontado’ sem o
haverem requisitado. E envolver ominosos artifícios para a tal se aceder.
3.
Desde logo estamos, em bom rigor,
perante um CRIME DE BURLA.
O
Código Penal português reza no seu
artigo 217:
“Quem,
com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por
meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar
outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo
patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
4.
E, depois, pelo ordenamento jurídico pátrio,
perante um ilícito de consumo, já que a LDC
– Lei de Defesa do Consumidor – prescreve no n.º 4 do seu artigo 9.º:
«O
consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha
prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua
cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da
sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento
ou deterioração da coisa».
5.
Mas tal hipótese também se acha
prevista na LEI DAS PRÁTICAS COMERCIAIS
DESLEAIS (DL 57/2008, de 26 de Março), como segue:
“É
agressiva, em qualquer circunstância e, como tal proibida, a prática que
consista em
«exigir o pagamento imediato ou
diferido de bens e serviços ou a devolução ou a guarda de bens fornecidos pelo
profissional que o consumidor não tenha solicitado...» (alínea
f) artigo 12.º).
6.
E, no n.º 1 do artigo 28 do DL
24/2014, de 14 de Fevereiro, se estatui que
«É proibida a cobrança de
qualquer tipo de pagamento relativo a fornecimento não solicitado de bens,
água, gás, electricidade, aquecimento urbano ou conteúdos digitais ou a
prestação de serviços não solicitada pelo consumidor (…)».
7.
A LDC, ademais, no seu artigo
9.º - A reforça tais proibições, a saber:
«1
- Antes de o consumidor ficar vinculado pelo contrato ou oferta, o fornecedor
de bens ou prestador de serviços tem de obter o acordo expresso do consumidor
para qualquer pagamento adicional que acresça à contraprestação acordada
relativamente à obrigação contratual principal do fornecedor de bens ou
prestador de serviços.
2
- A obrigação de pagamentos adicionais depende da sua comunicação clara e
compreensível ao consumidor, sendo inválida a aceitação pelo consumidor quando
não lhe tiver sido dada a possibilidade de optar pela inclusão ou não desses
pagamentos adicionais.
3
- Quando, em lugar do acordo explícito do consumidor, a obrigação de pagamento
adicional resultar de opções estabelecidas por defeito que tivessem de ser
recusadas para evitar o pagamento adicional, o consumidor tem direito à
restituição do referido pagamento.
4
- Incumbe ao fornecedor de bens ou prestador de serviços provar o cumprimento
do dever de comunicação estabelecido no n.º 2.
5
- O
disposto no presente artigo aplica-se à compra e venda, à prestação de
serviços, aos contratos de fornecimento de serviços públicos essenciais de
água, gás, electricidade, comunicações electrónicas e aquecimento urbano e aos
contratos sobre conteúdos digitais.»
8.
Se acaso o operador de comunicações
electrónicas facturar tais montantes a acrescer aos do serviço essencial e
exigir o pagamento na íntegra, pode o consumidor reclamar a quitação parcial (o pagamento só e tão só dos montantes de
serviço público que se acham contratados), de harmonia com o que estabelece o
artigo 6.º da LEI DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
ESSENCIAIS (Lei 23/96, de 26 de Julho), que dispõe como segue:
“Não
pode ser recusado o pagamento de um serviço público, ainda que facturado
juntamente com outros, tendo o utente direito a que lhe seja dada quitação
daquele…”
9.
Tais práticas configuram ainda um crime de especulação, previsto e punido
pela Lei Penal do Consumo – artigo
35, que comina com pena de prisão e multa uma tal conduta: prisão de seis meses
a três anos e multa não inferior a 100 dias.
10. Para
além dos enunciados crimes de burla e especulação, constituem ainda ilícitos
de consumo e ilícitos de mera ordenação social
passíveis de coima (sanção pecuniária) e em sanções acessórias.
Mário
Frota
Presidente emérito
da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal