O “direito de reparação” cuja previsão, na União Europeia, figura nas Resoluções do Parlamento Europeu de 2017 e 2020 [e, anteriormente, no Plano para a Economia Circular de 2015] não regista, entre nós, ao contrário do que se assevera algures, consideráveis desenvolvimentos.
Aliás, a Directiva de 20 de Maio de 2019 sob o tema “contratos de consumo e garantias a eles conexas”, reflecte tais preocupações, ao estabelecer – no quadro dos remédios disponíveis – uma gradação com aparente prevalência da reparação sobre a substituição em ordem à reposição da conformidade dos bens, como resultante do princípio da conservação dos negócios jurídicos e da reparabilidade dos bens como exigência de um consumo sustentável por mor dos Objectivos do Milénio.
Mas só aparente porque, como o previne, no seu preâmbulo, a directiva:
“Relativamente à reposição dos bens em conformidade, o consumidor deverá poder escolher entre a reparação e a substituição.”
O que quer significar que a reparação não precede de todo a substituição.
“Permitir que os consumidores exijam a reparação deverá incentivar um consumo sustentável e poderá contribuir para uma maior durabilidade dos produtos.”
Aliás, a Nova Agenda Europeia do Consumidor de 13 de Novembro de 2020 contempla-o de modo expresso:
“A futura revisão da ‘Directiva Venda de Bens’ proporcionaria uma oportunidade para analisar o que mais pode ser feito para promover a reparação e incentivar produtos circulares e mais sustentáveis. Serão analisadas várias opções relativas aos meios de defesa do consumidor, tais como a preferência pela reparação em detrimento da substituição, o alargamento do período mínimo de garantia para os bens novos ou em segunda mão, ou um novo período de garantia após a reparação.”
Notícia de 04 de Junho pretérito, que penetrou sobretudo os media brasileiros [“Olhar Digital”, entre outros], dava a saber que o Estado de Nova York acabara de aprovar a primeira lei sobre o ‘direito de reparação’ [a notícia emanada do Brasil diz de modo característico que o acto normativo rege sobre o “direito de consertar” ou o “direito ao reparo”: o Fair Repair Act (“A Lei da Justa Reparação”).
Os produtores de equipamentos electrónicos obrigam-se a prover os consumidores [e bem assim os técnicos independentes] de ferramentas, acessórios e manuais de instruções de molde a subtrair às marcas a exclusividade que por inteiro se lhes reservava.
Daí que já ninguém fique impreterivelmente vinculado à assistência técnica ‘autorizada’ e aos preços exorbitantes e extorsivos, tantas vezes praticados sob os auspícios e com o beneplácito das marcas, que de tal e de todo não abriam mão.
A causa próxima, nos Estados Unidos, da consagração do ‘direito de reparação’ decorre da tendência de os fabricantes de equipamentos electrónicos – em particular a Apple, a que outros se lhe associam –, dificultarem o mais possível a reparação dos seus produtos, não fornecendo peças, impondo software e ferramentas com absoluta exclusividade para as reparações, a que só a marca poderia prover, facultando a quem – e só a quem - o entendesse: à assistência autorizada que se lhes ligava umbilicalmente e permanecia sob sua rigorosa tutela.
A iFixit, que vem pugnando desde 2003 por que oficinas independentes façam a sua aparição no mercado, deflagrando o cenário exclusivo e em que só as marcas pontificam, perante a retumbante vitória alcançada, ter-se-á permitido fazer, na circunstância, um ‘naco’ de humor.
Parafraseando Neil Armstrong ao pousar na Lua, a iFixit considerou o “Fair Repair Act” como “um grande passo para a ‘reparidade’ ”.
“A aprovação de uma tal lei significa que as reparações se farão a preços mais acessíveis, mais moderados, e de forma mais extensa: as pessoas que intentem reparar os seus próprios equipamentos poderão fazê-lo agora”, garante.
“Enquanto, antes, os produtores forçavam os consumidores a recorrer às ‘autorizadas’, a partir de agora tais agências terão de competir em mercado aberto, já que o monopólio desaparece.”
A circunstância de se tratar da primeira lei aprovada nos Estados Unidos, país em que se acham sediados gigantes como Google, Apple e Motorola, é, com efeito, um enorme, um passo de gigante para a universalização do direito à [ou de] reparação.
Joe Biden havia instruído a Comissão Federal de Comércio a que adoptasse adequadas medidas susceptíveis de garantir o direito de reparação: a indústria opôs-se ferozmente, sob o pretexto de que os seus produtos se “sucateariam” em reparações em oficinas não autorizadas. E o facto é que averbou algumas vitórias.
Tal argumento vingou no segmento dos equipamentos médicos, que exorbitam da lei, porque as reparações de fontes não autorizadas seriam susceptíveis de conduzir a disfunções que poriam em risco a vida dos pacientes.
No Brasil pende seus termos, desde 2019, um projecto de Lei [o 5.241] que versa sobre a matéria em análise, mas a este ritmo dificilmente verá a breve trecho a sua consagração.
Em Portugal o pseudo-programa do Governo sob o lema da Defesa do Consumidor prevê se “defina e difunda, em cooperação com as associações de produtores e as de consumidores, um Índice de Reparabilidade de Produtos, prosseguindo a adopção de instrumentos que permitam ao consumidor obter informação e compará-la, no que à vida útil dos produtos diz respeito.”
Mário Frota
Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal