Recentemente, a Senacon
divulgou uma minuta ou texto provisório que altera o decreto do SAC. Há, no
entanto, dúvidas sobre o estudo que sustenta as mudanças na norma e até sobre o
texto provisório
POR IVAN VENTURA
A atualização (ou
modernização) do decreto do SAC, norma que regulamenta o relacionamento com o
cliente nos setores regulados (bancos, seguradoras e outros), é um antigo
desejo de praticamente todos os principais atores da sociedade de consumo: de
consumidores, passando por Procons, e até mesmo de empresas. Um dos motivos é
que existem diversos canais digitais sendo utilizados pelo consumidor, mas o
decreto em vigência cita apenas um meio de contato: o telefone.
Nos últimos dois anos, a
Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) deu início ao debate sobre a
modernização e, recentemente, anunciou que patrocinaria um estudo para entender
o que seria importante considerar em uma nova minuta.
Tudo indicava que o debate
teria um ponto final em 2020. Mas só parecia. A euforia inicial deu lugar à
tensão e uma certeza para a sociedade de consumo – justamente os defensores da
modernização: o texto atual não poderá ser aprovado. E os motivos chamam a
atenção.
ESTUDO
A minuta em debate na
Senacon prevê, entre outros pontos, mudanças significativas nas regras para o
SAC telefônico. De acordo com o texto provisório, o SAC telefônico seria um
canal de pós-venda, portanto deveria realizar apenas dois serviços:
cancelamento e reclamação. As informações, por outro lado, não seriam uma
função do SAC, ou seja, não haveria mais a obrigatoriedade via decreto.
Segundo Amélia Regina Alves,
consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e autora
do estudo, a diminuição de atividades do contact center é um instrumento que
poderá aumentar a resolutividade e a eficiência do SAC telefônico, pois o foco
será, exclusivamente, resolver problemas e cancelar produtos ou serviços.
“Precisamos aumentar a
eficiência no SAC. Então, que isso seja feito por meio de variáveis realmente
tangíveis. A mistura entre informação e queixa pode gerar ineficiência no
processo de resolubilidade. Esse é o maior divisor de águas para que o SAC
tenha como objeto de suas tratativas reclamação e cancelamento exclusivamente.
Nós entendemos que a busca por informação estaria vinculada a outros canais,
mas não ao SAC.”
Ainda segundo Amélia, os
argumentos que sustentam a mudança no SAC estão presentes no estudo. Uma das
conclusões é que apenas 24% dos consumidores que responderam à pesquisa preferem
resolver as demandas pelo contact center. Além disso, 91% das pessoas
informaram que gostariam de ser atendidas por outros canais além do telefone.
Por fim, 78% dos entrevistados disseram que preferem que o atendimento seja
feito por meio de canais digitais.
“EU GOSTO MUITO DE UMA FRASE
DO PREFEITO DE LONDRES, SADIK KHAN. ELE DIZ QUE ‘A GENTE NÃO PODE DEIXAR
NINGUÉM PARA TRÁS’. TODO MUNDO É FAVORÁVEL (À MODERNIZAÇÃO), MAS A NOSSA
PREOCUPAÇÃO É COM OS RETROCESSOS.”
RICARDO MORISHITA,
ADVOGADO, CONSULTOR E
PROFESSOR DE DIREITO DO CONSUMIDOR NA ESCOLA DE DIREITO DE BRASÍLIA (EDP)
ENSINO SUPERIOR
Há, no entanto, quem
discorde da avaliação presente no estudo. Especialistas ouvidos pela reportagem
afirmam que o estudo contém informações que não refletem o verdadeiro perfil
médio do brasileiro, logo não poderia indicar o desejo do consumidor.
De acordo com o estudo de
Amélia, dos 1.220 consumidores que participaram da pesquisa, 29,89% possuem
ensino superior. Mais: o estudo mostra que 26,72% do total fez pós-graduação.
Assim, temos um total de 56,61% de pessoas que, no mínimo, concluíram uma
faculdade ou universidade.
É claro que o número não
reflete o verdadeiro perfil de escolaridade do brasileiro. Muito pelo
contrário. De acordo com o relatório Education at a Glance, feito pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 21%
dos brasileiros, com idades entre 25 e 34 anos, têm ensino superior completo no
País. Outro estudo, desta vez produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), de 2018, aponta um índice ainda menor: 16,5% de brasileiros
com mais de 25 fizeram o ensino superior.
“A pesquisa escutou
‘consumidores’, mas nem sabemos qual cadastro foi utilizado. Que país é esse da
pesquisa com um número tão alto de pessoas com ensino superior? Isso não
representa o Brasil”, afirma Marcelo Sodré, professor da PUC/SP e ex-diretor do
Procon São Paulo.
Em sua defesa, Amélia afirma
que o estudo utilizou a chamada amostra de conveniência, ou seja, foi usada uma
base de dados já disponível na Senacon. “Eu trabalhei com uma amostra de
conveniência por dois motivos: se eu fosse fazer uma amostra estratificada (ou
que considere os diferentes grupos econômicos, sociais, entre outros), eu não
conseguiria fazer esse trabalho com os recursos que eu tinha. Na verdade, eu
não recebi para fazer a pesquisa. Eu não tinha recursos para fazer a pesquisa
de campo. Eu estava sendo paga para dar uma consultoria, mas o incremento na
pesquisa foi por minha conta. Eu trabalhei com uma amostra de conveniência, mas
ela é factível, sim, de ser usada. Se eu fosse considerar todas as partições
necessárias para uma amostra estratificada, esse estudo sairia uns R$ 3, 4, 5
milhões seguramente. Seria uma amostra para mais de 300 mil pessoas investigadas”,
explicou Amélia.
CONTATOS RECEBIDOS POR CANAL
ACESSO À INTERNET
O número de pessoas que
acessam a internet também foi outro fator importante no estudo. Amélia afirma
que a maioria dos brasileiros não utiliza o telefone, mas os canais digitais. E
para provar isso usou dados da Teleco, uma consultoria especializada em
telecomunicações.
O que chama a atenção na
informação utilizada pela consultora é que o dado citado por Amélia não se
refere ao total de pessoas que acessam a internet, mas ao potencial de alcance
da cobertura do sinal 4G, que poderia chegar a 97% da população brasileira.
O estudo TIC Domicílios,
feito pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) traz essa informação. A mais
recente edição do levantamento aponta que 71% da população brasileira tem
acesso à internet – tanto por linha fixa quanto por móvel. Ao mesmo tempo,
existem 47 milhões de brasileiros que não têm acesso à internet, sendo a
maioria (quase 26 milhões de pessoas) pertencente às classes C e D e vivendo em
áreas urbanas. Em áreas rurais, esse número seria próximo de 12 milhões.
“Sem o telefone para obter
informações, como as pessoas fariam para obter informações sobre um produto ou
serviço? Isso pode resultar em mais queixas para os consumidores”, afirma
Sodré.
NATUREZA DOS CONTATOS
MAPEAMENTO DO ATENDIMENTO
O estudo contratado pela
Senacon também não exibiu o perfil ou o mapeamento do atendimento ao consumidor
no Brasil, justamente uma informação citada por especialistas ouvidos pela
reportagem.
O Grupo Padrão, que edita
este Anuário e a revista Consumidor Moderno, publica todo ano o estudo chamado
“Cenário dos SACs”, que, em linhas gerais, exibe justamente o perfil do
atendimento ao cliente no Brasil. Este ano, excepcionalmente, o estudo não será
divulgado.
No ano passado, o estudo
apontou que 68,55% de todos os contatos feitos por consumidores ocorreram por
telefone. Os demais incluem mídias sociais, e mails, WhatsApp e outros. Além
disso, o estudo mostrou que 53% dos consumidores procuraram o SAC justamente
para pedir alguma informação.
“Vivemos um momento de
transição, e as plataformas de comunicação ainda estão sendo ampliadas. Mas
achamos que deveria ser apontado a manutenção do canal telefônico, justamente
em razão de ser o principal canal, conforme apontado no estudo do Grupo Padrão.
E ele (telefone) é o principal canal quantitativa e qualitativamente, uma vez
que possui uma resolutividade de 71,6%, segundo o estudo”, relata Claudio Pires
Ferreira, advogado e presidente do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa
do Consumidor.
Em outros países, a situação
não é muito diferente da realidade brasileira, segundo explica Claudio
Tartarini, advogado especialista em políticas públicas e assessor jurídico da
ABT (Associação Brasileira de Telesserviços). “Nos EUA, um dos países mais
liberais do mundo do ponto de vista econômico, 75% do atendimento ao consumidor
é realizado pelo telefone. Dentro desse universo, estão empresas de setores que
são alvo de regulamentação no Brasil. Na Europa, o percentual também não é
muito diferente”, informa.
“A PESQUISA ESCUTOU ‘CONSUMIDORES’, MAS NEM
SABEMOS QUAL CADASTRO FOI UTILIZADO. QUE PAÍS É ESSE DA PESQUISA COM UM NÚMERO
TÃO ALTO DE PESSOAS COM ENSINO SUPERIOR? ISSO NÃO REPRESENTA O BRASIL.”
MARCELO SODRÉ, PROFESSOR DA
PUC/SP E EX-DIRETOR DO PROCON SÃO PAULO
MINUTA: CONFLITOS DE REGULAMENTAÇÕES
Além do estudo, a reportagem
também pediu que especialistas analisassem a minuta apresentada pela Senacon.
Um ponto chamou a atenção e levantou a possibilidade de o decreto gerar uma
insegurança jurídica: a de tanto a Senacon quanto as agências reguladoras
criarem regulamentações diferentes sobre um mesmo tema.
Um exemplo é o artigo 5º da
minuta, parágrafo primeiro. Ele cria uma espécie de exceção à regra do SAC
exclusivamente para o pós-venda. A minuta prevê que o telefone excepcionalmente
estará disponível apenas para atendimentos de emergências e para consumidores
de baixa renda.
“O tema da exclusão do
atendimento e a excepcionalidade no tema do telefone são os grandes temas que
mudam a forma de se relacionar com o cliente, ou seja, tirar a obrigatoriedade
da informação, exceto para a baixa renda ou em emergências, é um critério amplo
e que precisa ser explicado pelo regulador. O que é emergencial ou qual é o
critério para classificar uma pessoa de baixa renda?”, questiona Vitor Morais
de Andrade.
Hoje, empresas do setor
elétrico aplicam uma tarifa social para famílias de baixa renda desde que elas
comprovem que não ultrapassaram o teto de consumo. Um exemplo aconteceu este
ano, quando a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba) concedeu o
benefício a famílias com consumo mensal de até 220 kWh entre os dias 1 de abril
e 30 de junho deste ano.
“TIRAR A OBRIGATORIEDADE DA INFORMAÇÃO, EXCETO
PARA A BAIXA RENDA OU PARA EMERGÊNCIAS, É UM CRITÉRIO AMPLO E QUE PRECISA SER
EXPLICADO PELO REGULADOR. O QUE É EMERGENCIAL OU QUAL É O CRITÉRIO PARA
CLASSIFICAR UMA PESSOA DE BAIXA RENDA?”
VITOR MORAIS DE ANDRADE,
ADVOGADO E VICE-PRESIDENTE DA ABRAREC
FALTA DE DEBATE
Por fim, há quem diga que
empresas e até Procons não participaram do debate antes da produção da minuta.
Agora, eles defendem que o assunto seja amplamente discutido.
Ricardo Morishita, advogado,
consultor, professor de direito do consumidor na Escola de Direito de Brasília
(EDP), defendeu a participação de especialistas importantes no Código de Defesa
do Consumidor (CDC) e até dos Procons.
“Eu gosto muito de uma frase
do prefeito de Londres, Sadik Khan. Ele diz que ‘a gente não pode deixar
ninguém para trás’. Todo mundo é favorável (à modernização), mas a nossa
preocupação é com o retrocesso. Ainda precisamos nos tornar uma sociedade
digital antes de exigirmos isso dos consumidores. Além disso, precisamos
ampliar o debate sobre o tema. Temos pessoas especializadas há mais de 30 anos
atuando na defesa do consumidor. É preciso ter diálogo com todos, ouvir todas
as partes. Precisamos reafirmar o papel do diálogo.”
Entre os setores da economia
que não teriam participado do debate, Morais de Andrade citou o setor de
contact center. Tartarini, da ABT, também destacou a ausência da ABT na
discussão e foi além. Em entrevista ao portal O Consumerista, o jurista chegou
a usar uma dura analogia sobre a eficácia da minuta na vida do consumidor: “É
como arrumar um avião em pleno voo retirando o motor de propulsão”.
A previsão inicial era
debater o tema até dezembro deste ano. Agora, o prazo foi esticado para abril
de 2021. Até lá, muita gente espera que o poder público, as empresas e os
Procons encontrem uma minuta que seja realmente boa para todos os lados.
“VIVEMOS UM MOMENTO DE TRANSIÇÃO, E AS
PLATAFORMAS DE COMUNICAÇÃO AINDA ESTÃO SENDO AMPLIADAS. MAS ACHAMOS QUE DEVERIA
SER VERIFICADA A MANUTENÇÃO DO CANAL TELEFÔNICO, JUSTAMENTE EM RAZÃO DE SER O
PRINCIPAL CANAL, CONFORME APONTADO NO ESTUDO DO GRUPO PADRÃO.”
CLAUDIO PIRES FERREIRA,
ADVOGADO E PRESIDENTE DO FNDC