É um controlo silencioso e progressivo. Um poder invisível com vigilância através de transacções financeiras, identidade digital, apps de saúde ou mobilidade, e uso de AI para controlo.
O Reino Unido está novamente a discutir a introdução de uma Identidade Digital obrigatória. O argumento oficial é simples: modernizar, simplificar, dar eficiência ao Estado e segurança ao cidadão. Já ouvi desculpas melhores.
A história recente do país e os ecos da filosofia política lembram-nos que a promessa de eficiência pode esconder um caminho perigoso para a liberdade.
O pretexto agora é o do combate à imigração ilegal. Em vez de fiscalizar, impedir a entrada de migrantes ilegais ou deportar os existentes, o novo “digital ID” tenciona negar o acesso ao trabalho de todos os cidadão que não o tenham, incluindo os locais ou imigrantes legais.
Não é a primeira vez que Londres tenta impor um cartão ou registo de identidade digital obrigatório. Já em 2006, o governo de Tony Blair (que curiosamente é um dos lobbyistas das empresas que produzirão este digital ID) apresentou um esquema de identidade biométrica nacional. Na altura, o projecto foi duramente contestado e acabou cancelado em 2010, com argumentos de que se tratava de uma ameaça desproporcionada à privacidade e de que criava uma base de dados centralizada vulnerável a abusos.
O simples facto de regressar hoje ao debate e de se tentar fazer um bypass ao parlamento aprovando esta lei imediatamente, mostra como, em cabeças autoritárias, a tentação do controlo nunca desaparece. O governo britânico limitou-se a esperar por uma nova justificação, seja ela o terrorismo, uma pandemia ou a fraude online. A única razão é o facto de não saberem governar e terem o país a braços com uma crise social sem precedentes na história moderna.
A tradição liberal britânica sempre se distinguiu por desconfiar de papéis e controlos centralizados. John Stuart Mill, em On Liberty, lembrava que a essência da liberdade não é a ausência de regras, mas a existência de limites ao poder do Estado sobre o indivíduo. George Orwell, em 1984, deixou o retrato distópico de um mundo onde cada passo era vigiado e cada acto registado. Michel Foucault, francês, descreveu o conceito de biopolítica como a gestão da vida, da saúde, da identidade e até dos movimentos dos cidadãos por parte de um poder centralizado. O que hoje se apresenta como conveniência digital mimica perigosamente esses cenários.
Acredito que, por este caminho, estamos a viver os últimos anos de verdadeira liberdade.
A combinação de identidade digital obrigatória com moedas digitais de bancos centrais (CBDCs ou MDBC em português) não é apenas inovação tecnológica, mas a construção de um sistema de controlo transaccional total. As CBDCs não são simples comodidade ou modernização financeira, mas sim ferramentas de controlo. Através destas moedas digitais obrigatórias e do fim do dinheiro como o conhecemos é possível vigiar e condicionar onde e como o cidadão gasta o seu dinheiro.
Este é um controlo silencioso e progressivo. Uma concentração de poder digital invisível com vigilância através de transacções financeiras, identidade digital, apps de saúde ou mobilidade, e uso de AI para monitorização e controlo.
Através de uma moeda digital programável, o Estado ou entidades supranacionais podem decidir onde, quando e em que gastamos o nosso próprio dinheiro. Como em tudo, é apenas uma questão de tempo e necessidade política.
Se for decretado digitalmente que não podemos sair de casa, o dinheiro deixa de funcionar fora dela. Se tentarmos comprar algo que não esteja autorizado, a transacção pode ser bloqueada. Deste modo, a liberdade económica, pilar de todas as outras liberdades, passa a ser um privilégio concedido condicionalmente.
Para quem acha que estou a exagerar e que tal é impossível, relembro o caso da China onde o sistema de crédito social é já hoje uma realidade e milhões de pessoas se vêem impedidas de alugar um apartamento, aceitar um trabalho ou sequer ir ao supermercado apenas por não seguirem determinadas regras estatais, serem jornalistas ou serem vozes criticas ao regime Chinês.
Este não é um exercício de imaginação. Os sistemas já estão em fase de teste em vários países. O carro eléctrico, por exemplo, hoje vendido como símbolo de sustentabilidade, pode facilmente tornar-se uma ferramenta de restrição de mobilidade. Desligado remotamente de zona para zona, obedecendo a critérios invisíveis definidos por algoritmos ou burocratas.
A identidade digital, apresentada como simplificação administrativa, pode ser usada como chave obrigatória para aceder a serviços, cruzando dados de saúde, finanças e mobilidade. Tudo em nome da eficiência. Mas eficiência para quem? Para o cidadão ou para o poder estatal que passa a controlar todos os detalhes da vida?
Esta é uma rede (grid) de controlo digital que se vai instalando peça a peça, lentamente. Passaportes de saúde, certificados de vacinação, sistemas de verificação biométrica, aplicativos bancários ou moedas digitais programáveis. Nenhum destes instrumentos, isoladamente, parece assustador, mas juntos, formam a arquitectura de uma tirania suave mas absoluta.
Um regime que não precisa de polícia na rua ou de censura explícita pois basta desligar a chave digital para impedir que o dinheiro funcione é um regime com controlo total. Basta sinalizar como cidadão de risco (e estamos a assistir a cidadãos britânicos a serem presos por posts em redes sociais) para que a vida seja progressivamente inviabilizada.
Os Portugueses, embora carentes e ansiosos por um pai que resolva problemas, não são um povo que admire este nível de controlo mas, Portugal como país que segue cegamente as directivas europeias com pouca ou nenhuma capacidade de interpretação, está igualmente em risco.
Devemos olhar para este debate britânico e para os alertas com seriedade e iniciar este debate para ontem. Não estamos imunes à pressão global. O Fórum Económico Mundial (WEF) e instituições internacionais têm defendido abertamente a criação de sistemas de identidade digital interligados, supostamente para aumentar a segurança e prevenir a fraude.
A verdade é que organismos como WEF erram no mais elementar. O povo não precisa de controlo. O povo precisa que os governos não errem na gestão da saúde, da economia, da justiça, da acção social, da educação ou da segurança.
Orwell escreveu que “a” liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. No futuro, a liberdade pode passar a ser simplesmente a de gastar o nosso dinheiro onde quisermos, deslocarmo-nos sem permissões digitais, existir sem que cada acto esteja sujeito a um registo biométrico central e a uma aprovação estatal.
Se deixarmos que se instale este modelo de controlo digital total, estaremos a abrir mão dessa liberdade em troca da ilusão de segurança. Como sempre, quando o poder se concentra demasiado, é muito complicado que alguma vez nos seja devolvido.
O Reino Unido já disse “não” uma vez, e corre o risco de deitar tudo a perder. Portugal tem de começar este debate hoje para que nunca venha a ser uma realidade.
Porque a verdadeira pergunta não é se precisamos de uma identidade digital para viver, mas se estamos dispostos a abdicar totalmente da liberdade em seu nome.”
Miguel Vargas - Empresário
Assine a petição contra a implementação de um ID Digital:
https://participacao.parlamento.pt/initiatives/5481
https://observador.pt/opiniao/identidade-digital-o-fim-da-liberdade/