INFORMAR PARA PREVENIR
PREVENIR PARA NÃO REMEDIAR
PROGRAMA
1.º.Julho.2025
VL
Do programa do Governo, no âmbito da Economia e da Coesão, consta o trecho seguinte:
“A consagração
constitucional dos direitos dos consumidores reclama, do mesmo modo, a atuação
eficaz por parte do Estado na proteção desses direitos, na vertente
regulamentar, no controlo fiscalizador dos mercados e na facilitação do recurso
a meios alternativos de resolução de litígios.”
E como pretende o Governo cumprir este capítulo?
MF
O que o Governo diz é que neste particular importa:
Aumentar o recurso a meios alternativos de resolução de litígios de consumo, reconhecendo o papel dos Centros de Arbitragem/ Resolução Alternativa dos Litígios de Consumo, garantindo uma rápida resolução de conflitos de consumo, operacionalizando eficaz exercício de direitos dos consumidores;
Assegurar a fiscalização da publicidade privilegiando as redes sociais e o ambiente digital, acompanhando a crescente digitalização da economia;
Combater a economia paralela, a fraude, as práticas fraudulentas na área alimentar, no âmbito das práticas comerciais desleais e na segurança dos produtos;
Reforçar a fiscalização e inspeção quanto à segurança dos alimentos e ao controlo do cumprimento das regras aplicáveis às atividades económicas dirigidas aos consumidores, em setores estruturantes da economia nacional como o turismo, a restauração, o retalho alimentar e não alimentar e, de forma transversal, o comércio eletrónico;
Assegurar a adopção, a nível nacional, dos instrumentos jurídicos da União Europeia em matéria proteção dos consumidores, em especial no âmbito da sua saúde e segurança, designadamente no âmbito da fiscalização do mercado e segurança geral dos produtos;
Apoiar o reforço da cooperação com entidades europeias internacionais, no âmbito da capacitação e do controlo e fiscalização dos mercados.”
VL
Como é que o Professor aprecia este fragmento da política do Governo?
MF
Os tribunais de consumo são, com efeito, um extraordinário trunfo para que a paz social cuja ruptura ocorra em algum segmento do mercado retorne em plenitude.
No entanto, dos 18 distritos, só oito se acham, em rigor, dotados. Se bem que territorialmente, e em termos supletivos, haja sido edificado o Tribunal Nacional, hoje sediado em Braga e com uma extensão em Viseu. O que se nos afigura insuficiente, como insuficientemente publicitados os que ora funcionam para que o vulgo saiba da sua existência e utilidade.
VL
Em que distritos faltam tribunais de consumo?
MF
Distritos como Bragança, Vila Real, Viana do Castelo, Beja, Évora, Setúbal, Santarém, Leiria, Aveiro, Viseu, cuja importância é manifesta, não se acham dotados de tribunais de consumo (enquanto órgãos de resolução alternativa de litígios emergentes de relações jurídicas de consumo).
Dever-se-ia ir mais longe e compaginar, em termos de utilidade económica, com o que ocorre com os julgados de paz: competência em razão do valor, em termos necessários, até metade da alçada dos tribunais de segunda instância (15 000 €), senão mesmo até aos 30 000 €, com a criação de turmas recursais, como sucede no Brasil com os juizados especiais cíveis.
Mas muito pouco tem sido feito nesse particular. Não bastam meras invocações ocas de sentido para se produzirem os efeitos indispensáveis à sua intrínseca utilidade, que é inequívoca.
VL
O que dizer da promessa de promover a fiscalização da publicidade e de outros segmentos do mercado?
No mais, ou as enunciações programáticas se acham deslocadas ou exigem distinto enquadramento.
MF
A perseguição da publicidade tanto em linha como fora dela é algo que cabe nas atribuições e competências correntes da DGC e da ERC (patrocínio) e não deve ser erigida em nota saliente de um qualquer Programa de Governo: é a ausência de uma qualquer política que conduz a estes “rodriguinhos” para preencher espaços…
Tão-pouco a perseguição à economia paralela, que releva de outro domínio. E o mais que se prende com as fraudes no domínio da segurança dos produtos em geral como no dos alimentares, em particular, algo que se inscreve na actuação quotidiana da polícia económica… e como tal tem de ser havido!
Outro tanto no que tange “ao turismo, à restauração, ao retalho alimentar e não alimentar e, de forma transversal, ao comércio eletrónico”: são actividades inspectivas e de fiscalização que preenchem o dia-a-dia das polícias; não têm de ser elevadas a notas estruturantes de uma política vera e própria.
Era como se se dissesse nas políticas de segurança: os agentes vão passar a perseguir mais intensamente os carteiristas…
Como o mais no tocante à fiscalização dos mercados nos segmentos da cooperação internacional, já que isso cabe sobretudo à União Europeia…
VL
Então o que é que devia figurar nas políticas de consumidores?
MF
Onde os aspectos relevantes da transformação digital e os da transição ecológica?
Onde um esforço de codificação do regime disperso dos Contratos de Consumo?
Onde a construção de um inexistente Sistema de Defesa do Consumidor?
Onde os relevantes apoios às instituições de consumidores emergentes da sociedade civil, como é de lei?
Onde a formação e a educação para a sociedade de consumo e para a sociedade digital nos curricula escolares?
Onde a informação institucional? A criação dos Serviços Municipais do Consumidor com primazia nesse particular?
A informação nos espaços da radiodifusão áudio e audiovisual públicos?
Onde a recriação do Conselho Nacional do Consumo, que jaz morto e arrefece?
Onde os Conselhos Municipais de Consumo, que de todo inexistem, em geral?
Onde a inteligibilidade das leis e seus suportes digitais, como manda a lei, há tanto tempo, em vão?
Um mínimo de sensibilidade, Senhores, e tudo se transformará!
Tantos juristas, decerto qualificados, no Governo… e tanto alheamento!
Na verdade, dizer o que se disse ou nada, é quase a mesma coisa.
O desimportamento pelos direitos dos consumidores em Portugal não tem paralelo com o que acontece designadamente na União Europeia.
O que é pena!
II
CONSULTÓRIO DO CONSUMIDOR
Serviços não solicitados, montantes inexigíveis facturados, valores insusceptíveis de ser pagos…
“A empresa de comunicações com que contratei um pacote de serviços surpreende-me porque de onde em onde excede os valores, já que cobra muito acima do convencionado.
Dificuldades para reclamar porque nem me atendem e despistam-me...
O banco não paga acima do acordado. Só complicações porque terei de pagar sempre à parte.”
Eis o que se nos oferece dizer:
1. A 02 de Fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça (pela Conselheira Clara Sotto Mayor) decretara já, em situação similar:
I – …
II – Nos termos do artigo 9.º- A, n.º 2 e n.º 3 da Lei n.º 24/96, a obrigação de pagamentos adicionais depende da sua comunicação clara e compreensível ao consumidor, sendo inválida a aceitação pelo consumidor quando não lhe tiver sido dada a possibilidade de optar pela inclusão ou não desses pagamentos adicionais; nos casos em que a obrigação de pagamento adicional resultar de opções estabelecidas por defeito que tivessem de ser recusadas para evitar o pagamento adicional (ou que nem admitem a possibilidade de recusa), o consumidor tem direito à restituição do referido pagamento.
III - Uma remissão para o lugar da internet da Vodafone para mais informações (…) e um consentimento genérico e presumido, meramente formal, prestado no momento da adesão ao pacote, normalmente com informações sumárias prestadas ao telefone e sem fornecimento prévio do texto escrito do contrato, para reflexão, não são suficientes para permitir aos consumidores uma escolha consciente e para a obtenção de uma vontade esclarecida.
IV – Não é o cliente quem deve, por iniciativa própria, tentar efectivamente conhecer as condições gerais, é ao fornecedor que compete proporcionar-lhe condições para tal.
V – …
VI – O conceito de boa-fé, como critério de validade das [condições gerais dos contratos] (artigo 15 do DL n.º 446/85), surge como externo ao contrato e à relação concreta estabelecida entre as partes, sendo fonte de limitação à liberdade contratual.
VII – A boa-fé concretiza-se pelos critérios gerais fixados no… citado diploma – a tutela da expectativa do aderente e o objectivo do contrato – e é objecto de tipificações legais exemplificativas do seu alcance que dão corpo a regras de proibição de conteúdo contratual (artigos 18, 19, 21 e 22 do DL n.º 446/85), como contrapartida de um regime jurídico que atribui um poder inusitado ao predisponente de [condições gerais dos contratos], contexto negocial que exige ao julgador um papel corrector e constitutivo da justiça contratual.
VIII – A cláusula em litígio das Condições Gerais do Contrato de Adesão ao serviço … relativa à descrição do “Serviço de Acesso à Internet Móvel” dispõe o seguinte: “O serviço permite, ainda, utilizar um conjunto de serviços adicionais, como por exemplo a Opção Extra para os tarifários pós-pagos ou o acesso gratuito a Wi-Fi nos hotspots da Vodafone Portugal. Para mais informações sobre serviços adicionais consulte www.vodafone.pt ou ligue para o Serviço Permanente de Atendimento a Clientes 16912 (tarifa aplicável)”.
IX – A citada cláusula contraria as duas vertentes da boa-fé – a tutela da confiança e a proibição do desequilíbrio significativo de interesses – porque introduzida num pacote de serviços com um preço, a troco de uma prestação principal, a que acrescem custos adicionais atípicos como contrapartida de serviços extra activados automaticamente, sem que o consumidor tenha a possibilidade de recusar tais serviços.
X – Esta cláusula envolve riscos para os interesses económicos do aderente, desrespeita a autodeterminação e as expectativas deste e provoca, ainda, um desequilíbrio contratual significativo traduzido na circunstância de a ré, onerando os consumidores com custos adicionais com os quais estes não contam no seu orçamento familiar, obter um incremento injustificado nas suas margens de lucro.
XI – Assim, da aplicação conjunta dos artigos 15 e 16 do citado diploma, conjugados com a al. d) do artigo 19 (cláusulas relativamente proibidas), que proíbe cláusulas que impõem ficções de aceitação ou de outras manifestações de vontade com base em factos para tal insuficientes, e com a alínea b) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei 24/96, resulta que a cláusula contratual geral em crise nestes autos é uma cláusula que contraria a boa-fé e é proibida pela lei.”
2. Este acórdão é paradigmático: não solicitou, não pagou; não tem de pagar se nada solicitar: o silêncio não vale consentimento…
3. Por conseguinte, tem não só de recusar de futuro o pagamento, como deve exigir a devolução do que prestou indevidamente.
VL
“Quem cala consente, mas quem trinca consente mais?”
“Há dias, num restaurante, na Ribeira, no Porto, ao instalarmo-nos na mesa que nos fora indicada, estavam já algumas entradas na mesa.
Houve quem se servisse e quem se não servisse.
Atento à conta, verifiquei que as entradas haviam sido facturadas na íntegra.
Chamei o “garçom” e ele disse que ali era assim e mostrou um papel emoldurado com a seguinte frase e uma justificação que não nos convenceu: “quem cala, consente, mas quem trinca, consente mais, e não poderá reclamar, quando detetar, na conta, as entradas que não pediu”.
E exigiram-nos que pagássemos.
No Brasil entradas não pedidas são “oferta grátis”. Em Portugal é diferente?”
MF
Apreciada a questão, eis que cumpre responder:
1. No Brasil é assim, sabemo-lo, por força do inciso III e do § único do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor: “os serviços prestados e os produtos remetidos sem solicitação prévia equiparam-se às amostras grátis, inexistindo a obrigação de pagamento”.
2. Mas em Portugal não é diferente: desde logo, a Lei-Quadro de Defesa do Consumidor estabelece-o, como princípio geral, no n.º 4 do seu art.º 9.º:
“O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa.”
3. Mas a Lei dos Contratos à Distância e Outras Práticas Negociais reitera-o no seu artigo 28:
“1 - É proibida a cobrança de qualquer tipo de pagamento relativo a fornecimento não solicitado de bens… ou a prestação de serviços não solicitada pelo consumidor…
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a ausência de resposta do consumidor na sequência do fornecimento ou da prestação não solicitados não vale como consentimento.”
4. Mas o Regime Jurídico do Acesso ao Comércio, Serviços e Restauração de 16 de Janeiro de 2015 prescreve no n.º 3 do seu artigo 135:
“Nenhum prato, produto alimentar ou bebida, incluindo o couvert, pode ser cobrado se não for solicitado pelo cliente ou por este for inutilizado.”
5. Logo, à falta de uma, há três disposições na lei portuguesa a proibir tais práticas.
6. Constitui contra-ordenação económica grave a violação de tais preceitos: a coima que se lhe associa depende da dimensão da empresa, se micro, pequena, média ou grande:
. Micro-empresa: de 1 700 a 3 000 €
. Pequena empresa: de 4 000 a 8 000 €
. Média empresa: de 8 000 a 16 000 €
. Grande empresa: de 12 000 a 24 000 €
Se de pessoa singular se tratar, a coima oscilará entre 650 a 1 500 €.
7. A prática constituirá ainda crime de especulação com prisão de seis meses a um ano e multa não inferior a 100 dias (DL 28/84: art.º 35).
8. A participação far-se-á no Livro de Reclamações e a autoridade competente para a instrução dos autos e aplicação das sanções é a ASAE.
EM CONCLUSÃO:
1. Entradas não solicitadas (“couvert” lhes chama a lei) são havidas como gratuitas (Lei 24/96: n.º 4 do art.º 9.º; DL 24/2014: art.º 28; DL 10/2015: n.º 3 do art.º 135)
2. Tais práticas constituem contra-ordenação económica grave cuja moldura variará em função do infractor (DL 10/2015: n.º 1 do art.º 143; DL 09/2021: al. b) do art.º 18).
3. E poderá constituir ainda crime de especulação com prisão e multa (DL28/84: art.º 35)

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