Jorge Sampaio, presidente da República decesso, punha na boca de um amigo algo que tinha como realidade indisfarçável: “as leis em Portugal são mera sugestão, não imperam, não mandam, não obrigam…”
E, com efeito, em inúmeras circunstâncias a realidade parece não desmentir tão perturbante asserção.
Uma promotora de Justiça do Estado de Pernambuco, em conferência por nós, há dias, proferida na FACEN – Faculdade Central, do Recife, interpelou-nos a propósito da validade de uma eventual lei de prioridades de pessoas com descapacidades e outras características, já que se surpreendeu, no Aeroporto de Lisboa, quando, reclamando “preferência legal”, no embarque, dado o seu estado de saúde, eram preteridos todos os que a poderiam reclamar, já que a Lei da Ryanair, empresa de navegação aérea, só conferia prioridade a quem a pagasse.
E, com efeito, exemplificou, havia duas filas: a dos que pagaram para ter prioridade no embarque e a dos restantes mortais.
Reclamou prioridade, à semelhança do que ocorre no Brasil, o que lhe foi de todo negado.
Com efeito, no caso, a Lei Ryanair sobrepõe-se à Lei da República, o que não é de estranhar porque a empresa que superintende nos aeroportos (a ANA) é uma multinacional francesa que decerto ignorará as leis nacionais… E anda distraída destas coisas elementares como se os passageiros fossem “carne para canhão”!
O que diz o DL 58/2016, de 29 de Agosto, no que ora importa?
Eis o que prescreve o artigo 3.º, sob a epígrafe “Dever de prestar atendimento prioritário”:
1 - Todas as pessoas, públicas e privadas, singulares e colectivas, no âmbito do atendimento presencial ao público, devem atender com prioridade sobre as demais pessoas:
a) Pessoas com deficiência ou incapacidade;
b) Pessoas idosas;
c) Grávidas; e
d) Pessoas acompanhadas de crianças de colo.
2 - Para os efeitos estabelecidos no presente decreto-lei, entende-se por:
a) «Pessoa com deficiência ou incapacidade», aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas e que possua um grau de incapacidade igual ou superior a 60 /prct. reconhecido em Atestado Multiúsos;
b) «Pessoa idosa», a que tenha idade igual ou superior a 65 anos e apresente evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais;
c) «Pessoa acompanhada de criança de colo», aquela que se faça acompanhar de criança até aos dois anos de idade.
3 - A pessoa a quem for recusado atendimento prioritário, em violação do disposto nos números anteriores, pode requerer a presença de autoridade policial a fim de remover essa recusa e para que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para receber a queixa …”
A lei, mesmo com estes conceitos indeterminados, aí está.
E não se cumpre!
A Lei Ryanair sobrepõe-se, reitera-se, à Lei da República!
É um “raio de ar” que lhe dá e faz com que ofusque a lei de uma república que se desprestigia ao permitir que os seus comandos, na violabilidade que é característica inalienável da norma, permaneçam ineficazes pela impunidade reinante!
Quem quer atrever-se a enfrentar a ANA (a gaulesa Vinci)?
Que autoridade quer esgrimir as armas da lei contra os obuses do poder económico-financeiro de uma controversa companhia aérea que ousa desafiar as leis do país de acolhimento?
Que razões há para se subverterem as leis da República sem um simples gesto de recriminação, de reverberação, de censura de banda dos (ir) responsáveis que por aí campeiam?
Nada a dizer por parte dos garantes da legalidade?
O que dirá a Provedora de Justiça, que decerto ignorará o facto?
O que dirá a Procuradora-Geral da República, guardiã da legalidade?
O que dirá o Ministério da tutela, decerto pouco preocupado com minudências como as que entroncam na dignidade da pessoa humana, esteio do Texto Fundamental?
Uma vergonha! Simplesmente… uma inominada vergonha!
Mário Frota
Presidente da apDC – DIREITO DO CONSUMO -, Portugal
E.T. No Brasil, as “preferências legais”, como as denominam, cumprem-se escrupulosa, religiosamente
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