O contrato previa sucessivas renovações de um ano.
O proprietário não se opôs até então à renovação do contrato: o contrato renovou-se, pois, sucessivamente.
Ao renovar-se em 2018, por um ano, opera-se, entretanto, uma mudança na lei.
Com efeito, o artigo 1096 do Código Civil, em seu n.º 1, sob a epígrafe “renovação automática”, passou a partir de 13 de Fevereiro de 2019 a conter a seguinte disciplina:
“Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior…”
Por conseguinte, o primitivo contrato, que terminou a 31 de Agosto de 2018, ter-se-á renovado, por força das alterações ao artigo 1096 do Código Civil, a 1 de Setembro de 2021, só ocorrendo o seu termo três anos depois, ou seja, a 31 de Agosto de 2024.
A corroborar este entendimento, o acórdão de 02 de Fevereiro de 2021 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatora: a desembargadora Maria Raquel Tavares):
“I - No artigo 1º da Lei n.º 13/2019 de 12 de Fevereiro enuncia-se que a mesma vem estabelecer medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios e a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano.
II - Nos arrendamentos para habitação permanente, a liberdade dos contratantes para modelarem o conteúdo do contrato sofreu significativas limitações com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, quer quanto à exigência de um prazo mínimo de um ano (cfr. artigo 1095º n.º 2 onde está em causa uma norma imperativa que não admite convenção em contrário) mas também quanto à sua renovação pois, ainda que as partes possam convencionar a exclusão da possibilidade de qualquer renovação, só terão liberdade para convencionar prazo de renovação igual ou superior a três anos, impondo o legislador um prazo mínimo, também imperativo, de três anos.
III - Os contratos de arrendamento com prazo para habitação permanente renovam-se automaticamente, por períodos sucessivos de igual duração ou, se esta for inferior, de três anos, em conformidade com o estipulado no número 1 do artigo 1096º do Código Civil.”
A 02 de Agosto em curso, porém, o arrendatário é visitado por um agente de execução que lhe apresenta um documento, datado de 24 de Julho de 2023, com as seguintes menções:
PROCESSO
N.º 477/23.6T8.ESP
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Espinho- Tribunal de C. Genérica – Juiz 2
E no corpo do documento:
“Fica notificado de que:
Os requerentes, Fulano e Beltrano, consideram resolvido o contrato celebrado em 20 de Agosto de 2013, referente à fracção autónoma …., sito na Rua…, em Espinho, concelho de Espinho, inscrito na matriz…, com fundamento na oposição à renovação do contrato de arrendamento.
Ficam obrigados a proceder, no termo do mandato, à entrega do locado, livre de pessoas e bens, no estado em que o recebeu – conforme consta da cláusula 6.ª do contrato de arrendamento (vide doc. 3).
Ficam obrigados a mostrar o prédio arrendado aos senhorios ou a pessoa por este mandatada, no mês anterior ao termo do contrato, ou seja, durante o mês de Agosto, em dias de semana, desde já se indicando as quartas feiras e sextas feiras, no horário das 18.00 às 20.00 horas, conforme consta da cláusula 11 do contrato de arrendamento.”
Com a Mulher ausente, o agente de execução fê-lo assinar o documento em sua substituição.
Ora, a atitude do agente de execução é, a todos os títulos, reprovável.
Com este documento entregue de supetão e com estas referências parece que lhe estava a dar uma Ordem de Despejo decretada pelo Tribunal. Para o fim ou para pouco depois de meados do mês de Agosto em curso.
Claro que com o alvoroço causado a vítima deixou desde logo de dormir, com receio das consequências para si e sua família, já que teria de arranjar num fósforo, ou seja, do pé para a mão, um tecto… e ao preço por que estão as casas, o que pensar?!
Claro que teve de ir procurar alguém que pudesse descodificar o que entendera ser uma “Ordem de Despejo” imediato…
Importa, no entanto, desde já esclarecer:
Primeiro, não é de uma ORDEM DE DESPEJO que se trata, em acepção verdadeira e própria.
Não se trata de resolver ou considerar resolvido o contrato, como consta, aliás, da notificação judicial avulsa (a saber, “os requerentes, F… e B…, consideram resolvido o contrato…).
A resolução pressupõe o incumprimento do contrato por parte do (s) arrendatário (s).
E os arrendatários jamais incumpriram qualquer das obrigações a seu cargo. Nem foram citados nem notificados para qualquer acção de despejo.
Antes se trata, na circunstância, de uma ‘oposição à renovação do contrato’, que está sujeita, aliás, a um dado prazo (120 dias em relação ao termo do contrato), para não deixar os arrendatários descalços, mormente neste momento de efectiva fome de casas e de rendas extorsivas no quase inexistente mercado de arrendamento no país.
Ainda assim o prazo, ante as circunstâncias, considera-se insuficiente e a lei deveria ser retocada nesse particular.
Não se percebe como é que os tribunais deixam passar pelos seus dedos “estas pérolas”... (claro que não é aos tribunais que compete ensinar, mas às escolas de direito… a que incumbe também não aprovar quem não domine, no mínimo, as matérias nelas preleccionadas).
Segundo, não vão, pois, os arrendatários visados ser sujeitos a qualquer despejo a 20 ou 31 de Agosto do corrente ano.
Terceiro, não há de modo expresso data indicada (patente má-fé, não?) para que deixem o prédio ou a fracção autónoma objecto do contrato de arrendamento (20 de Agosto / 31 de Agosto de 2023?).
Isto é feito com o inconfesso propósito de pregar um susto aos arrendatários (como está, aliás, a acontecer… com sucesso!) e para que deixem o locado no fim do mês (ou a 20 de Agosto, como ali se insinua)?
Em quarto lugar, a assinatura do cônjuge na notificação dirigida à mulher de nada vale porque, com efeito, ela não foi notificada fosse lá do que fosse. E precisa de o ser para que a notificação surta efeito, ou seja, tenha eficácia, quando tiver de a ter.
Depois, importa ter presente o que diz o artigo 1097 do Código Civil, sob a epígrafe “oposição à renovação deduzida pelo senhorio”:
“1 - O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte:
a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos;
b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano;
d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses.
2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.
3 - A oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
4 - …”
Por conseguinte, é ilusório pretender-se que o termo do contrato ocorra a 20 ou a 31 de Agosto do ano em curso (2023). E se notifique o casal para deixar o locado no fim do mês em curso (?).
Se a oposição à renovação não ocorrer, nos termos do Código Civil, no decurso dos prazos legais, o contrato renovar-se-á de 01 de Setembro de 2024 a 31 de Agosto de 2027.
A omissão detectada na notificação judicial avulsa parece haver sido deliberada. É, por conseguinte, nula, não produzindo quaisquer efeitos. A indicação do denominado “dies ad quem” é elemento essencial da notificação, segundo o nosso entendimento.
Um juízo de censura, pois, se nos afigura de dirigir ao agente de execução pela conduta dúbia revelada, o que causou enorme pânico ao casal, privando-o do sono, obrigando-os a inusitadas despesas para aclaramento da questão, perturbando-os de forma superlativa, o que tem, afinal, suma relevância jurídica.
Não se esqueça que a Lei que prevê e pune o “assédio no arrendamento” [Lei n.º 12/2019, de 12 de Fevereiro] é susceptível de se aplicar sempre em situações paralelas:
“É proibido o assédio no arrendamento…, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objectivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afecte a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado.”
Não se esqueça ainda que a própria lei prevê, no artigo subsequente, que:
“Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contra-ordenacional decorrente dos actos e omissões em que se consubstancie o [assédio], o arrendatário pode intimar o senhorio a tomar providências ao seu alcance…”
De lamentar, isso sim, que haja atitudes do jaez destas em detrimento do clima de equilíbrio e de tranquilidade social que deve presidir a relações do estilo.
Pelo menos, em conclusão, o casal não terá de sair da fracção tomada de arrendamento no imediato. E cumpre aguardar que o locador, se o pretender, o notifique da sua oposição à renovação no tempo e no lugar próprios, com a antecedência legalmente prevista.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO -, Portugal
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