quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O SAC E OS RISCOS DE RETROCESSO

Para qualquer lado que se olhe, o Brasil tem vivido uma série de retrocessos. 

O meio ambiente e a saúde são os mais visíveis. Na educação, vamos demorar um pouco para constatar o atraso em que nos metemos. A área de proteção dos consumidores tem resistido nos últimos 30 anos e se mantido de alguma forma sempre andando para a frente. Mas agora parece que os riscos aumentaram e pela primeira vez, depois da edição do Código de Defesa do Consumidor, a proteção dos consumidores sofre a ameaça de ter suas balizas destruídas. O caso da discussão da reforma do decreto que regulamenta a atividades dos SACs – Serviços de Atendimento aos Consumidores é um bom exemplo a comprovar esta tese.

Não resta dúvida de que é necessário repensar as atividades dos SACs. O decreto que regulamenta o tema é de 2008 e muita água correu debaixo da ponte nestes anos todos, o que justifica a importância de se discutir este tema. Mas a discussão deveria ser pública em vez de ficar restrita a alguns atores somente. Vejamos.

No ano de 2019, a Secretaria Nacional do Consumidor contratou uma pesquisa sobre o tema. Aqui, já surge o primeiro problema. Tal pesquisa, produzida no ano de 2020, consultou vários atores para obter suas opiniões: fornecedores, agências reguladoras e a sociedade. Aqui, começa o problema: não foi consultado nenhum dos órgãos e entidades que atuam na defesa dos consumidores. E muito menos as entidades civis. Se não bastasse este problema, a pesquisa, ao consultar a sociedade, parte de uma base que não representa a sociedade brasileira: a Senacon encaminhou uma lista de consumidores que já usaram o sistema consumidor.gov e que, por exemplo, é constituída de quase 60% das pessoas com nível universitário. Por óbvio, este campo de pesquisa não representa a sociedade brasileira. Por estes fatos, e por outros que este espaço não permite aprofundamento, a pesquisa é completamente distorcida da realidade. Só para ficar com mais um exemplo, pasmem, a pesquisa fez dois “achados”: (i) os SACs não devem ser usados para a busca de informações pelos consumidores, servindo apenas para a formulação de reclamações e pedidos de cancelamento de serviços; e (ii) os consumidores não valorizam o atendimento telefônico feito por pessoas, preferindo o atendimento por internet feito por robôs.

“Não resta dúvida de que é necessário repensar as atividades dos SACs. O decreto que regulamenta o tema é de 2008 e muita água correu debaixo da ponte nestes anos todos, o que justifica a importância de se discutir este tema. Mas a discussão deveria ser pública em vez de ficar restrita a alguns atores somente.”

Se não bastassem estes problemas gravíssimos, a minuta ofertada pela consultoria foi modificada – não se sabe por quem e quando –, e surgiu uma segunda minuta ainda pior, que está sendo discutida no Conselho Federal de Liberdade Econômica, que é como deveria ser chamado o conselho recentemente instituído. A confusão começa com as definições. Continuemos nos exemplos: a nova minuta apresenta a seguinte definição de “processo de atendimento”: transformação intencional da parte do fornecedor que produz a diferença entre dois estados do consumidor que o conduzem ao atendimento de sua manifestação. Entenderam? Se pode complicar, por que simplificar?

Mas vamos ao pior de tudo: sem nenhuma discussão ampla, sem consulta pública, sem análise de impacto regulatório, a minuta do novo decreto propõe que os fornecedores desenvolvam plataformas online de solução de disputas, integrando seus canais de SAC com a plataforma consumidor.gov Ao mesmo tempo, em outra proposta, a Senacon incentiva a mediação para a solução de conflitos, com os mediadores sendo pagos pelos fornecedores.

Fechou-se o circuito: as reclamações dos serviços regulados seriam tratadas no âmbito da plataforma consumidor.gov, com os órgãos e as entidades do sistema de defesa absolutamente ausentes na orientação dos consumidores e os mediadores, custeados pelos fornecedores, assumindo tal função.

Penso que nem os fornecedores nem as agências reguladoras acreditam que este caminho é adequado. Tal proposta beneficia, no fundo, um único segmento: aquele que trabalha com mediação.

Resistir é a palavra de ordem.

 

Marcelo Sodré

Professor da PUC/SP

 

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