(06
de Setembro de 2024)
LOCAÇÃO-FINANCEIRA
E COMPRA E VENDA:
GARANTIA
CERTEIRA OU MERA “LENDA”?
E,
se depois da locação,
vier
a ser adquirido,
temos
carro “garantido”…
ou
não, ou de todo não?
“Um veículo automóvel,
objecto de um contrato de locação financeira, chegado ao seu termo, é susceptível de venda ao locatário: uma
vez consumada a compra e venda, tem ou não a garantia de usado?
A
empresa locadora não lha quer dar, uma vez que, diz, o consumidor já vem beneficiando do veículo, que era novo
aquando do contrato.
Tratando-se
de uma compra e venda de veículo usado, tem ou não, a esse título, a garantia
legal?”
Apreciada
a factualidade, cumpre emitir parecer:
1. Há que entender que a solução que se oferece
é-o na perspectiva de um contrato de
consumo: num dos polos o vendedor, noutro o consumidor, cujos bens se destinam
a uso próprio, que não profissional [Lei 24/96: n.º 1 do art.º 2.º] .
2. “Locação financeira é
o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à
outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída
por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período
acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples
aplicação dos critérios nele fixados.”
[DL 149/95: art.º 1.º].
2. A
Lei da Locação Financeira (LLF) diz, porém, no que se refere a “despesas”:
“salvo estipulação em
contrário, as despesas de reparação do bem locado… ficam a cargo do locatário”:
no silêncio do contrato (a não houver cláusula em contrário) as despesas de
reparação, p, e., ficariam, pois, a cargo do locatário-consumidor [DL 149/95:
art.º 14].
3. Tratando-se
de um contrato de consumo, tal disposição da LLF esbarra na Lei da Compra e
Venda dos Bens de Consumo (LCVBC), aplicável também à locação: “[A lei] é,
ainda, aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos
no âmbito de um contrato de … locação de
bens de consumo” [DL 84/2021: al. b) do n.º 1 do art.º 3.º].
4. No
entanto, a haver eventual colisão de normas prevalecem sempre as da LCVBC de 2003
ou de 2021 sobre as da LLF de 1995, porque especiais [a lei especial derroga a
geral].
5. A
LCVBC prevalece, designadamente, no silêncio do contrato quanto a despesas de
reparação do bem enquanto a relação contratual durar, tanto mais que, em
contraponto com a LLF, a Lei da Compra e Venda de Bens de Consumo reveste
natureza imperativa [contra a natureza supletiva da LLF (que só se aplica se os
contraentes não pactuarem outra coisa)].
6.
Sob a epígrafe “imperatividade”, estabelece a LCVBC que “sem prejuízo do
regime das [condições gerais dos contratos], é nulo o acordo ou cláusula contratual
pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou
limitem os direitos do consumidor...” [DL 84/2021: art.º 51].
7. Operando-se a transmissão da propriedade da
coisa para o locatário-consumidor, as regras da LCVBC aplicar-se-ão sem
excepção: tratando-se de coisa móvel usada, “o prazo de três anos de garantia”
pode ser reduzido, por acordo das partes, nunca por período inferior a 18 meses
(ano e meio) [DL 84/2021: art.º 12].
10. Por conseguinte, não
há, na circunstância, qualquer objecção, pelo contrário, a que se aplique a LCVBC
numa locação-venda, tão logo a transmissão da propriedade da coisa, por meio do
contrato de compra e venda, venha a ocorrer: donde, ter de ser assegurada a
garantia de três (3) anos, como se de bem usado se tratasse (que o é em todo o
caso), podendo por acordo fixar-se tal garantia em prazo não inferior a 18
meses.
EM
CONCLUSÃO:
a. Em se tratando de um contrato de consumo, a
LCVBC também se aplica ao regime da
“locação financeira”.
b. Mesmo no silêncio do contrato, i. é, se não houver cláusula em
contrário, é ao locador que compete assegurar a conformidade do bem, não sendo
lícito se transfira tal responsabilidade, nos termos da garantia legal, para o locatário-consumidor.
c. Em caso de venda do bem locado, o
locador-vendedor tem de assegurar a garantia legal, sem mais, ou negociá-la com
o locatário-comprador até 18 meses (ano e meio), mas tem obrigatoriamente de a
observar.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal