Mário Frota
Antigo Professor
da Universidade de Paris Est – França
Fundador e
primeiro Presidente da AIDC/IACL – Associação Portuguesa de Direito do Consumo
Fundador e
presidente emérito da apDC – Associação Portuguesa de Direito do Consumo –
Coimbra
Fundador e
primeiro director do CEDC – Centro de Estudos de Direito do Consumo - Portugal
I
DOS
CONTRATOS FORA DO ESTABELECIMENTO NO BRASIL
1.
A
formulação
Do
Código de Defesa do Consumidor brasileiro:
“Art.
49.
O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua
assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a
contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do
estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o
consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os
valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão,
serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.”
II
DOS
CONTRATOS FORA DE ESTABELECIMENTO NA UNIÃO EUROPEIA
1.
Conceito
Contrato de compra e venda de consumo é, conforme a
lei:
“o contrato pelo qual… o
fornecedor… transfere a propriedade dos bens para o consumidor, em que se
inclui qualquer [outro] que tenha simultaneamente por objecto bens e serviços*”
*No caso, os bens com
conteúdos ou serviços digitais.
Os objecto mediato tanto
pode revestir
§ coisas
físicas como
§ coisas
físicas com elementos digitais
[Um telemóvel inteligente
pode vir com uma aplicação normalizada pré-instalada, nos termos do contrato, v.g., uma aplicação de alarme ou de uma câmara.
Um relógio inteligente,
p.e.,: no caso, o próprio relógio seria a coisa que integra elementos digitais,
que só desempenharão as suas funções com uma aplicação fornecida nos termos do
contrato, descarregada pelo consumidor em um telemóvel inteligente.
Eis a formulação legal do contrato fora de
estabelecimento:
“é o celebrado na presença física simultânea do fornecedor
de bens.. e do consumidor em local que não seja o estabelecimento comercial
daquele, incluindo os casos em que é o consumidor a fazer uma proposta
contratual” e os mais celebrados no próprio estabelecimento comercial precedendo
determinadas circunstâncias.
Tais contratos não se
restringem aos celebrados ao domicílio.
2.
Modalidades:
compreensão e extensão do conceito
Considera expressamente a
lei, no entanto, como contrato fora de estabelecimento os celebrados:
2.1. no domicílio do consumidor (vendas
porta-a-porta) com um período de ponderação ou reflexão mais dilatado que os usuais
14 dias de calendário: 30 (trinta) dias se consignam para o exercício do direito
de retractação (o de ‘dar o dito por não dito’);
2.2. no local de trabalho do consumidor (vendas
no trabalho);
2.3. em reuniões em que a oferta seja promovida
por demonstração perante um grupo de pessoas reunidas no domicílio de uma
delas, a pedido do fornecedor (ou seu representante) (vendas em reuniões “tupper-ware” ou “Bimby”);
2.4. durante deslocação organizada pelo fornecedor
fora do respectivo estabelecimento comercial (ofertas ao estilo de “conheça Andorra… grátis”…), cujo
período reflexão é de 30 dias, dado o
ambiente para que o consumidor é atraído e as suas naturais fragilidades, os de
idade mais avançada e de couraça menos reforçada, tal o universo alvo a que se
dirige;
2.5. no local indicado pelo fornecedor, a que o
consumidor se desloque, por sua conta e risco, na sequência de comunicação
comercial que se lhe dirija (contrato por convite a contratar) (ou celebrados
em instalações de Bombeiros, Cáritas, Cruz Vermelha, precedidos de falsos
rastreios para lhes ‘impingirem’ colchões “ortopédicos”, equipamentos, acessórios
médicos do mais diverso jaez, numa efabulação sem limites…);
2.6. no estabelecimento comercial do fornecedor,
através de meios de comunicação à distância, imediatamente após o consumidor
ter sido, pessoal e expressamente, contactado em local que não o do
estabelecimento (contactos de rua ou por meios de comunicação à distância para
dados estabelecimentos onde as negociações decorrem e os contratos se
concretizam): tais contratos são havidos como se fora fora de estabelecimento,
com os direitos daí emergentes.
3.
Exclusões
O regime estatuído não se
aplica a todas as espécies contratuais ou a contratos com determinado escopo.
Aplica-se, na medida e
nas condições previstas nas suas disposições, aos contratos celebrados entre um
fornecedor (que exerça habitual e reiteradamente uma actividade económica de
escopo egoístico, de pendor lucrativo) e um consumidor (por consumidor se
entendendo a pessoa física, singular, que adquire bens e serviços para consumo
próprio e do seu círculo familiar, em noção que contrasta com a do Código de
Defesa do Consumidor que vigora nessas paragens desde 11 de Março de 1991).
Aplica-se ainda aos
contratos de fornecimento de água, gás, electricidade ou aquecimento urbano,
ainda que se incluam, como fornecedores, entidades públicas ou municipais, na
medida em que os produtos de base ou os serviços sejam dispensados mediante
base contratual.
Do seu âmbito se excluem,
por imperativo legal, determinadas
espécies, cumprindo, pois, aclarar o ponto: há, com efeito, excepções ao
regime, sem que tal constitua menor pendor protectivo aos consumidores nas espécies
contratuais versadas.
Exactamente porque, em
dados termos, o regime de tais contratos logra assento em distintos diplomas em
que se lhes dispensa uma lastro protectivo de assinalar ante as especificidades
de que se revestem.
A disciplina de um tal
instrumento normativo não se aplica a contratos que por objecto mediato hajam:
• Os serviços sociais, nomeadamente no sector da habitação
social, da assistência à infância e do apoio às famílias e pessoas permanente
ou temporariamente necessitadas, inclusive nos cuidados continuados;
• Os cuidados de saúde prestados ou não no âmbito de uma
estrutura de saúde;
• Os jogos a dinheiro que impliquem apostas pecuniárias em
jogos de fortuna ou azar, incluindo lotarias, jogos de casino e apostas;
• Os serviços financeiros à distância (há um diploma
distinto a reger, em particular, este domínio);
• A criação, aquisição ou transferência de bens imóveis ou de
direitos sobre bens imóveis, regrada noutros instrumentos em vigor no
ordenamento pátrio;
• A construção de novos edifícios, à reconversão substancial
dos edifícios existentes e ao arrendamento para fins habitacionais, que relevam
do Código Civil ou de leis avulsas;
• As viagens organizadas, férias organizadas e os circuitos
organizados a que se consagrada um diploma autónomo;
• Os contratos de utilização periódica de bens (time share), de aquisição de produtos de
férias de longa duração, de revenda e de trocas, versados de análogo modo e com
acrescida tutela em diploma próprio;
• Os certificados por um titular de cargo público obrigado
por lei à autonomia e imparcialidade, bem como a garantir, fornecendo
informações jurídicas pormenorizadas, que o consumidor apenas celebre o
contrato após uma ponderação jurídica cuidada e com pleno conhecimento do seu
alcance jurídico;
• O fornecimento de géneros alimentícios, bebidas ou outros
bens destinados ao consumo corrente do agregado familiar, entregues fisicamente
pelo profissional em turnos frequentes e regulares ao domicílio, residência ou
local de trabalho do consumidor;
• Os serviços de transporte de passageiros com
especificidades que se realçam em nota destacada (1)
4. Contratos fora de estabelecimento:
forma legal
Os contratos celebrados
nestes termos, de harmonia com o que prescreve a lei, obedecem a forma, não são
meramente consensuais (DL 24/2014: art.º 9.º):
“1 - O contrato celebrado
fora do estabelecimento comercial é reduzido a escrito e deve, sob pena de
nulidade, conter, de forma clara e compreensível e na língua portuguesa, as [cláusulas
impostas por lei].
2 - O fornecedor… deve
entregar ao consumidor uma cópia do contrato assinado… ou, se o consumidor concordar, noutro suporte
duradouro, …”
Se se inobservar a forma,
os contratos são nulos e de nenhum efeito: a nulidade, de harmonia com o regime
geral, é susceptível de invocação por qualquer interessado, podendo ser
declarada oficiosamente pelo tribunal.
II
DO PERÍODO DE
PONDERAÇÃO OU REFLEXÃO
- Peculiares cautelas no domínio de contratos
prenhes de surpresas
De há muito que se entende a especificidade de contratos do jaez destes e
das habilidades dos que promovem as vendas ao intentarem explorar as
fragilidades de quem atraído por métodos
de venda quiçá insinuantes e sinuosos: daí que se exija que o consentimento seja reforçado, mais
reflectido, mais ponderado.
Ao período de reflexão ter-se-á sucedido um genuíno período de
retractação tendente à eliminação de um dado contrato do giro comercial, após
cuidada ponderação dos seus termos.
Hoje, na Europa, tal período uniformizado se acha na ordem dos 14 (catorze)
dias consecutivos, com excepção, em princípio, de determinados contratos de
seguro e, mais recentemente, em razão da Directiva Omnibus – n.º 2019/2161, de 27 de Novembro – cujo lapso é de 30
(trinta) dias, a saber, nos contratos
celebrados no domicílio ou no decurso
de uma excursão promovida pelo fornecedor de molde a que possam
fundadamente contratar, com inteira liberdade e livre de pressões e
precipitações de qualquer origem.
O período de reflexão visa ainda permitir se evite a precipitação a que negócios do
jaez destes tendem e se obste a que a exposição dos consumidores a estratégias
mercadológicas perturbadoras surta
perniciosos efeitos.
O consumidor,
desprovido de formação para o consumo e sem resistências anímicas, cede
facilmente perante artifícios, sugestões e embustes de que se povoa o mercado:
e os operadores exploram hábil e exponencialmente a sua ligeireza, a leviandade
ou a precipitação, num cabal aproveitamento de situações de inexperiência,
candura, inocência, se não mesmo de dependência psicológica a que o consumidor se
expõe.
O direito de
retractação, ainda que sob uma enorme mancha de heterónimos, mal conseguidos, tem
de asssumir papel de notória relevância na arquitectura do iter negocial, em prol do consumidor, por definição vulnerável ou,
quiçá, hipervulnerável.
- Direito de retractação:
noção
Nos negócios jurídicos, ainda que presenciais, como é o caso, e como forma de prevenir eventuais
precipitações ante uma menor ponderação das consequências dos contratos em que
se enleiem, confere-se aos consumidores um período de reflexão dentro do qual é
lícito exerça o direito de retractação.
A um tal direito o ordenamento já denominou indistintamente como
. rescisão
. livre revogação
. revogação unilateral
. livre resolução
. resolução
. resolução unilateral
Trata-se, porém, de um direito que outros cognominam de arrependimento ou
desistência.
E que a Directiva de 2011, ora em apreciação, designa, ao que se nos
afigura com propriedade, como “direito
de retractação”.
Retractar-se
significa, de modo corrente, segundo os dicionários, “v.t. dar por não dito; v.p.
desdizer-se; mostrar arrependimento público.”
O povo, na
sua linguagem chã, diz simplesmente: “dar o dito por não dito”, “voltar com a
palavra atrás”.
- Características
Em regra, o direito de retractação tem
como características essenciais as que se enunciam como segue:
. irrenunciabilidade
. imotivabilidade
. inindemnizabilidade, em tese de princípio.
O direito de retractação é
insusceptível de renúncia.
Não é lícito ao consumidor renunciar a
um tal direito que se tem por injuntivo, dada a sua natureza.
A renúncia, a ocorrer, é havida como
não escrita.
Outra das características é a sua
imotivabilidade, vale dizer, a insusceptibilidade de só valer se for motivado,
se houver fundamento que o suporte.
Para se exercer não terá de ser
motivado, fundamentado, de se mobilizarem razões ou se arregimentarem
argumentos que consubstanciem e tornem viável o exercício do direito.
E, por último e em princípio, pelo
facto de se exercer o direito não se sujeitará o consumidor a indemnizar o
fornecedor por eventuais prejuízos daí resultantes.
O mero exercício do direito não
importará, pois, eventual penalidade.
- Excepções ao regime-regra
Hipóteses
em que o direito de retractação não subsiste:
O direito de retractação previsto nas
hipóteses para que verte a directiva comporta um sem-número de excepções, a
saber:
- Nos
contratos de prestação de serviço, depois de integralmente satisfeito,
caso a execução haja sido iniciada com o prévio consentimento expresso do
consumidor, e com o reconhecimento de que o direito de retractação se
esvanece quando o contrato tiver sido plenamente executado;
No
fornecimento de bens ou prestação de serviços cujo preço dependa de
flutuações do mercado financeiro que o fornecedor não possa controlar e
sejam susceptíveis de ocorrer durante o prazo de retractação;
No
fornecimento de bens produzidos segundo as especificações do consumidor ou
claramente personalizados;
No
fornecimento de bens susceptíveis de se deteriorarem ou de ficarem
rapidamente fora de prazo;
No
fornecimento de bens selados não susceptíveis de devolução por motivos de
protecção da saúde ou de higiene quando abertos após a entrega;
No
fornecimento de bens que, após a entrega e pela sua natureza, fiquem
inseparavelmente misturados com outros artigos, como no caso dos
combustíveis líquidos;
No
fornecimento de bebidas alcoólicas cujo preço tenha sido acordado aquando
da celebração do contrato de compra e venda e cuja entrega apenas possa
ocorrer após um período de 30 dias, de que o valor real dependa de
flutuações do mercado insusceptíveis de controlo pelo fornecedor;
Nos
contratos para os quais o consumidor tenha solicitado especificamente ao
fornecedor que se desloque ao seu domicílio para efectuar reparações ou
operações de manutenção. Se, porém, por ocasião de tal deslocação, o
fornecedor se propuser executar serviços para além dos especificamente
solicitados pelo consumidor ou empregar bens diferentes das peças de
substituição imprescindíveis à manutenção ou reparação, o direito de
retractação como que renasce, aplicando-se a esses serviços ou bens
adicionais;
No
fornecimento de gravações áudio ou vídeo seladas ou de programas
informáticos de análogo modo selados a que tenha sido retirado o selo após
a entrega;
No
fornecimento de um jornal, periódico ou revista, com excepção dos
contratos de assinatura para o envio dessas publicações;
Nos
contratos celebrados em hasta pública;
No
fornecimento de alojamento, para fins não residenciais, transporte de
bens, serviços de aluguer de automóveis, restauração ou serviços
relacionados com actividades de lazer se o contrato previr uma data ou
período de execução específicos;
No
fornecimento de conteúdos digitais que não sejam fornecidos num suporte
material, se a execução tiver início com o consentimento prévio e expresso
do consumidor e o seu reconhecimento de que deste modo perde o direito de
retractação.
5. Exercício do direito de retractação
O consumidor que, após
ponderação, pretenda exercer o direito de retractação, transmite ao fornecedor
uma tal decisão antes do termo do prazo para o efeito assinado. Para tanto, é
lícito ao consumidor:
Utilizar o modelo de retractação previsto no anexo da
directiva em apreciação, que consta de análogo modo do anexo ao presente
escrito; ou
Efectuar qualquer outra declaração inequívoca em que
comunique a sua decisão de retractação do contrato.
Os Estados-membros ficam inibidos de impor eventuais
requisitos formais suplementares ao modelo de formulário de retractação, para
além dos que nele figuram.
O consumidor exerce o seu direito dentro do prazo de
retractação de 14 ou 30 dias (ou nos 14
ou 30 dias subsequentes, se a comunicação referente ao exercício do
direito se expedir antes dos 12 meses
imediatos: ou, a subsistir a omissão, nos 12 meses subsequentes aos 14 ou 30
dias iniciais após a entrega ou a celebração do contrato, consoante os casos,
de harmonia com as modulações da lei.)
O fornecedor pode, para além dos meios facultados no passo
procedente, dar ao consumidor a possibilidade de preencher e apresentar por via
electrónica o modelo de formulário de retractação padronizado, ou qualquer
outra declaração inequívoca através do respectivo portal da Rede Mundial de
Informação.
Em tais casos, o
fornecedor remete ao consumidor, sem quaisquer compassos de espera e em suporte
duradouro, um aviso de recepção da comunicação presente.
6.
Omissão
de informação sobre o direito de retractação: efeitos
Se o fornecedor não tiver
habilitado o consumidor com informação atinente ao direito de retractação, nem
assim o contrato é nulo por violação de disposição legal de carácter imperativo.
Com efeito, a lei confere
uma dilação para o efeito: o prazo passa, como se assinalou, a expirar 12 meses
após o termo do prazo de retractação inicial, determinado de harmonia com o que
as directivas e a lei dispõem.
Se
o fornecedor oferecer ao consumidor a informação pertinente no lapso de 12
meses a contar da data em que o prazo se conta, em consonância com a directiva
e a lei, o prazo de retractação expira 14 ou 30 dias, consoante os casos, após
o dia em que o consumidor tiver tido acesso a tal informação.
(1)
Consoante o preâmbulo da Directiva
‘Direitos do Consumidor’ (27), impõe-se uma precisão, a saber, “os serviços de
transporte incluem o transporte de passageiros e o transporte de bens. O
transporte de passageiros deverá ser excluído do âmbito de aplicação da
presente directiva, atendendo a que já está sujeito a outras disposições
legislativas da União ou, no caso dos transportes públicos e táxis, a uma
regulamentação a nível nacional. No entanto, as disposições da presente
directiva destinadas a proteger os consumidores em caso de aplicação de taxas
excessivas pela utilização de meios de pagamento ou em caso de custos ocultos
deverão ser igualmente aplicadas aos contratos de transporte de passageiros. No
que se refere ao transporte de bens e ao aluguer de automóveis, que constituem
serviços, os consumidores deverão beneficiar da protecção proporcionada pela
presente directiva, excepto no que diz respeito ao direito de retractação.”