Dão-se alvíssaras a
quem achar a
Comissão Nacional das Cláusulas Abusivas
E que funda admiração!
Não é que muito nos tarda
A alongada Comissão
Como o ” amigo” na Guarda?
“Ai Deus, e u é?”
(Inspiração das ‘cantigas
de amigo’ do Cancioneiro Medieval Galaico-português)
(autoria imputada a Afonso X ou Sancho I)
“Ai eu coitada,
como vivo em
gram cuidado
por meu amigo que hei alongado;
muito me tarda
o meu amigo na Guarda.
Ai eu coitada,
como vivo em
gram desejo
por meu amigo que tarda e nom vejo;
muito me tarda
o meu amigo na Guarda.”
I
GENERALIDADES
O ordenamento jurídico
pátrio terá sido valorizado com a criação de uma Comissão das Cláusulas
Abusivas por Lei de 27 de Maio de 2021, emanada da Assembleia da República.
O Parlamento Português (a
Assembleia da República) impôs ao Governo a regulamentação da lei, em sessenta dias, naturalmente após a sua
publicação (26 de Julho de 2021), predefinindo o seu começo de vigência em 25 de Agosto de 2021.
Ora, o Governo mostrou-se
relapso, deixando passar as datas e, neste no momento, não há um qualquer
regulamento. Cerca de um ano
volvido, não há Comissão estruturada, instalada e, consequentemente, menos
ainda a funcionar…
Um
ano depois…
De um projecto,
porém, a que acidentalmente se acedeu,
quiçá, susceptível de substanciais alterações, porque sem se ater às exigências
da lei no que tange à eficácia do caso
julgado, que é um dos seus calcanhares de Aquiles, poder-se-á esboçar, ainda que sem firmeza e após
correcções, o desenho que de seguida
ousamos apresentar.
II
SISTEMA
ADMINISTRATIVO DE
CONTROLO
DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS ABUSIVAS
1. Escopo
O sistema administrativo de controlo e prevenção de cláusulas
abusivas visa prevenir a adopção de condições gerais dos contratos proibidas
(e, consequentemente, nulas nos contratos singulares) em quaisquer suportes de
pré-adesão.
À Comissão incumbe
proceder à análise de contratos que adoptem condições gerais dos contratos em
circulação no mercado, com vista a prevenir e fazer cessar as que por lei se
consideram proibidas, tanto absoluta como relativamente, operacionalizando o
sistema de controlo e prevenção de
cláusulas abusivas.
Para além do controlo
prévio que incumbe, ainda que de modo pontual, a determinadas entidades, como
resulta em particular de determinados diplomas legais.
2. Comissão Nacional das Cláusulas
Abusivas: composição
A Comissão criada no seio
do Ministério da Justiça e do da Política de Consumidores, de natureza
independente, seria, numa das versões, composta pelos seguintes membros:
O Director-Geral do Consumidor ou um
seu representante;
O Director-Geral da Política de
Justiça (ou outrem em sua representação);
Um representante da Autoridade de
Segurança Alimentar e Económica;
Um magistrado judicial designado pelo
Conselho Superior da Magistratura;
Um magistrado designado pelo Conselho
Superior do Ministério Público;
Duas personalidades de reconhecido
mérito da Academia na área do Direito;
Três representantes das associações de
consumidores de âmbito nacional e interesse genérico;
Três representantes das associações
empresariais dos sectores de actividade económica.
3. Suporte administrativo da
Comissão
As implicações
quotidianas no plano administrativo em ordem ao funcionamento da Comissão
impenderiam sobre a Direcção-Geral do
Consumidor, talqualmente sucede com o ineficaz Conselho Nacional do Consumo (de
si, ao que se nos afigura, de todo moribundo) .
4. Poderes da Comissão
Nacional das Cláusulas Abusivas
À Comissão incumbirá proceder à
análise de formulários com base em condições gerais dos contratos ou de
contratos singulares deles decorrentes, em circulação no mercado, com vista a
prevenir e ou fazer cessar o uso de cláusulas consideradas proibidas, nos
termos da lei de referência;
Compete-lhe ainda recolher os
contratos com uso de condições gerais
emanadas dos distintos predisponentes, para os efeitos de apreciação e
apuramento da existência de cláusulas abusivas;
Emitir parecer sobre o caracter
abusivo de condições gerais constantes de contratos, mediante solicitação dos
respectivos predisponentes ou das autoridades reguladoras e de fiscalização
sectorialmente competentes;
Dirigir recomendações aos
predisponentes de contratos assentes em condições gerais, visando prevenir a
utilização de condições gerais consideradas abusivas, nos termos dos artigos
respectivos da Lei das Condições Gerais dos Contratos vigente;
Emitir determinações que ordenem a
remoção de condições gerais dos contratos consideradas abusivas, nos termos dos
dispositivos aplicáveis.
6. Audiatur altera pars
A Comissão ouve [oferece
o contraditório(a)]os predisponentes de contratos com base em condições gerais
previamente à emissão de pareceres, recomendações ou determinações a tal
respeito, bem como a entidade reguladora que em tal domínio prepondere.
7. Cooperação entre a
Comissão e as Entidades Regulatórias e Fiscalizatórias: algo de imperativo
e, a todos os títulos, exigível.
8. Portal das Cláusulas
Contratuais:
Construir-se-á um Portal em que se registam e publicitam
Os pareceres, as recomendações e as
determinações da Comissão;
Os modelos de contratos elaborados com
recurso a condições gerais dos contratos e dispensados por prestadores de
serviços públicos essenciais;
As decisões judiciais transitadas em
julgado ou as decisões administrativas que constituam caso decidido que hajam
proibido o uso de condições gerais dos contratos e respectivas recomendações,
bem como as decisões judiciais transitadas em julgado que tenham declarado a
nulidade de cláusulas inseridas em contratos singulares.
Responsabilidade da sua manutenção: incumbe à Direcção-Geral do Consumidor a
responsabilidade pela informação carreada para o Portal, devendo assegurar a
sua fácil compreensibilidade, fiabilidade
e permanente actualidade.
9. Formulários de adesão
dos Serviços Públicos Essenciais
Sem prejuízo do
cumprimento de outros deveres de submissão ou depósito de formulários de que
constem condições gerais dos contratos, sectorialmente aplicáveis, os
prestadores de serviços públicos essenciais [dos ora denominados serviços de
interesse económico geral] devem depositar, na Comissão, e antes da sua circulação no mercado, os
modelos dos contratos oferecidos aos consumidores pelo recurso a tais condições
gerais.
Mediante portaria, a
emitir pelo membro do Governo com a pasta da Política de Consumidores [um
Ministério do Consumo ou, preferivelmente, o Ministério da Justiça], podem ser
enumeradas outras áreas de actividade sujeitas ao dever de depósito dos modelos
contratuais elaborados com recurso a condições gerais dos contratos, tal como
se prevê no passo precedente.
10. Registo
Nacional das Cláusulas Abusivas
Os dados constantes do Registo Nacional de Cláusulas Abusivas,
nas bases de dados do Ministério da Justiça [coisa ora de somenos e de que a
generalidade ignora até pelas sobreposições de “competências” (Ministério da
Justiça, Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa do Ministério Público)
subsistentes], transferir-se-ão para o Portal.
Incumbe à Comissão
organizar e manter actualizado, no Portal gerido pela Direcção-Geral do
Consumidor, o registo das cláusulas abusivas comunicadas por quem de direito,
nos termos precedentemente enunciados.
Os registos constantes do
Portal podem, mediante hiperligação, ser acedidos através da base de dados www.dgsi.pt.
11. Apreciação
administrativa do carácter abusivo
As autoridades reguladoras
e fiscalizadoras sectorialmente competentes verificam o carácter abusivo de
cláusulas contratuais gerais utilizadas pelos operadores económicos que se
encontrem no seu perímetro de supervisão, quando contrariem o disposto nos
pertinentes lugares da Lei das Condições Gerais dos Contratos, proibindo
consequentemente o seu uso. Em sobreposição, ao que parece, com o que emerge –
em termos de atribuições e competências – dos “poderes da Comissão Nacional das
Cláusulas Abusivas. Ponto que carece de ser convenientemente definido, se não
mesmo esclarecido, a não constar da Lei-Quadro das Entidades Regulatórias nem
da Lei Orgânica que a cada uma em particular
compete.
E o que se pretende é que
as decisões destarte adoptadas sejam publicitadas no sítio electrónico da
competente autoridade reguladora, comunicadas e remetidas em cópia, no prazo de
30 dias, à Comissão das Cláusulas Abusivas.
Mas este é, com efeito,
um filme algo distinto, já que há neste particular se apresenta um desenho que
parece escapar à previsão da lei habilitante.
12. Termo de Ajustamento de Conduta
O acordo em ordem à
sustação das cláusulas abusivas entre a entidade legitimada para a propositura
da acção e o predisponente, que a apDC
– Direito do Consumo – propusera, não
foi previsto nem sequer suscitado. Que o não seja por ignorância do “aprendiz
de legislador” que nos coube em sorte…
Afigura-se-nos o modelo
mais adequado, à semelhança do que ocorre com superlativo sucesso no Brasil.
Nem sequer de tal se fala
na esfera do Governo. Lamentavelmente!
Note-se que numa denúncia recente, desde o
momento em que a acção fora proposta em juízo até à audiência de discussão, o
tempo de duração dos trâmites processuais se protelou por mais de seis anos.
Tempo em que os contratos feitos a partir daquele modelo continuaram a circular
com cláusulas abusivas neles apostas e em detrimento dos consumidores (para só
pensarmos nestes, que a Lei se não restringe às relações jurídicas de consumo
“qua tale”, antes abarca também as relações jurídicas de trabalho – o contrato
individual de trabalho – e as relações jurídicas interempresariais).
Ao que parece, a hipótese
de se seguir tal modelo não está a ser encarada pelo Governo, por ignorância ou
menor consideração pela figura, com ampla aceitação no Brasil e excelentes
provas dadas.
Praza a Deus (e o voto
que ora se exprime pode ser efectivamente
vetado ou proscrito porque o
Estado é laico…) se não descarte esta magna hipótese de se evitar a
conflitualidade estéril e os avultados prejuízos para a economia decorrentes
dos enviesados procedimentos a que o Governo parece dar guarida!
É tempo, é hora!
Mário Frota
Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal