REDUFLAÇÃO: um “palavrão” com um forte sabor a lesão… um requintado “primor” que afecta, afinal, os interesses económicos do consumidor!
(Artigo cujo tema foi ampliado para publicação hoje, 02 de Novembro de 2021, no Portal do PROCON RS, por gentil deferência do director da Escola Superior de Defesa do Consumidor, em Porto Alegre, Dr. Diego Ghiringhelli de Azevedo)
“Reduflação é o processo mediante o qual os produtos diminuem de tamanho ou quantidade, enquanto o preço se mantém inalterado ou sofre um qualquer acréscimo.
Tal efeito é consequência do aumento do nível geral dos preços dos bens, manifestado por unidade de peso ou volume, causado por inúmeros factores, principalmente a perda do poder aquisitivo da moeda e a queda do poder de compra dos consumidores e/ou do aumento do custo das matérias primas, cuja resposta da oferta é a redução do peso ou tamanho dos bens transaccionados.
A reduflação concebe-se, portanto, como uma forma de adaptação da oferta à pressão inflacionária, e surge para evitar uma perturbação na dinâmica de transferências para o mercado, ante a concorrência. Por causa e efeito, apresenta-se destarte como uma forma encapotada de inflação.
A expressão resulta de uma tradução literal do termo ‘shrinkflation’, um neologismo inglês, cunhado por Pippa Malmgren e Brian Domitrovic, na obra editada em 2009 "Econoclasts: The Rebels Who Sparked the Supply-Side Revolution and Restored American Prosperity" (lit. Econoclastas = Os Rebeldes que despoletaram a revolução da Oferta e Restauraram a Prosperidade Americana), que resulta da aglutinação de «shrink» 'reduzir, encolher' e «(in)flaction» '(in)flação'.”
Alexia Sardi-Antasan alertava, há dias, num periódico europeu de grande circulação, que nos tempos que correm a reduflação (“shrinkflation”) parece assentar arraiais, instalar-se entre nós com “armas e bagagens”.
O fenómeno tem tido uma enorme repercussão na Grã-Bretanha em consequência do Brexit, ao que afiançaram recentemente outras fontes.
“Reduzir quantidades sem diminuir preços na grande distribuição”: eis a receita miraculosa dos capitães da indústria agro-alimentar para que se faça repercutir (de modo discreto) o aumento dos custos das matérias-primas no preço dos produtos na cadeia da produção ao consumo.
Tal inflação, dissimulada, revela-se algo complexa à luz do dia:
“É muito difícil surpreender os produtores no acto porque há que lograr encontrar o produto (o mesmo produto), no mesmo espaço físico, em espaços temporais distintos: antes da operação de “maquilhagem” e após a operação de redução da quantidade ou do volume.
“Nos últimos dois anos, identificámos com sucesso dois casos do estilo, explica Camille Dorioz, directora da campanha da ONG Foodwatch (organização sem fins lucrativos que pugna por uma alimentação sem riscos, sã e acessível a todos, que faz ouvir a voz dos consumidores e milita por mais transparência no domínio agro-alimentar e defende o direito a uma alimentação que não lese nem as pessoas nem o ambiente, com antenas institucionais na Alemanha, na França e nos Países Baixos).
“As nossas armas? O nome e a exprobação (o vexame) nas redes sociais. Outro obstáculo, é que produtores e distribuidores vêm ‘sacudindo a água do capote’ de cada vez que o fenómeno ocorre ou se detecta. Eis que se nos depara uma indústria demasiado opaca. Portanto, de escassos dados de suporte se dispõe”. Em particular porque a reduflação (“shrinkflation”) não é ilegal, desde que haja de todo compatibilidade entre a composição do produto e a rotulagem”.
Registe-se que o álcool é o único produto cuja concentração por unidade é estritamente regulamentada. Para evitar decepções, é preferível ‘monitorar’ os preços por unidade de medida, parâmetro que muitos dos consumidores já vêm adoptando, para além de haver de ficar desperto para eventuais mudanças susceptíveis de ocorrer nas embalagens.
(Há dias, no Mercado da Figueira da Foz, numa praia de eleição, na Região Centro de Portugal, um dos comerciantes ali estabelecido fazia passar por 1 Kg. 800 gramas de nozes pré-embaladas… com uma “destreza” incalculável e com um enorme despudor, ignorando que havia ali, no espaço da sua banca, duas ou três balanças de que os consumidores se poderiam socorrer para a confirmação do peso…)
Camille Dorioz chega a citar “uma das práticas mais tortuosas do marketing que consiste, aliás, em esperar que um produto fique bem “preso, ancorado” ao carrinho de compras do consumidor para se degradar a qualidade e / ou jogar com a quantidade, gradualmente, paripassu. Um tal processo, fundado na habituação e na “confiança no produto”, pode levar de 3 a 5 anos a maturar. Os consumidores ficam naturalmente menos atentos e de todo não reagem ao processo ‘degenerativo’ que intencional, deliberadamente se instaura!”.
“90% dos produtos consumidos na Europa são importados. E quando não se ignora que trazer um contentor de 40 pés da Ásia custa quatro vezes mais do que há 18 meses, cerca de US $ 15.000 (12 882€), a factura a pagar é elevada. Daí que para atribuir a 'encolha' (a redução) a uma resposta de curto ou a uma estratégia de longo prazo dos industriais, seja algo difícil de dizer ”, comenta Arthur Barillas, CEO da Overseas.
O debate está, portanto, longe da sua conclusão.
O certo é que a tentação está em crescendo. É preciso dizer que a margem de manobra desses pesos-pesados é pequena: entre vendas em alta e preços em alta, a fronteira costuma ser ténue.
Como assevera Sardi-Antasan, as associações de interesse económico do agro-alimentar não se pronunciam. Menos ainda as marcas. Nem sequer as empresas de pesquisa especializadas, que para tanto não dispõem de dados: o que revela o quão difícil é o fenómeno, longe de um consenso do ponto de vista científico.
Confira o exemplo que segue: o nível de facturação líquida da Coca-cola, oscilou entre US $ 33 biliões e US $ 37 biliões desde 2017,e, de acordo com o Statista, parece ter atingido um patamar elevado. A multinacional conta para o efeito com a embalagem de seu ‘precioso néctar’: apresenta garrafas de vidro e latas de alumínio com um design cuidado, mas com uma capacidade limitada (25 e não 33 centilitros, como do antecedente).
Ou, entre nós, como recorda um consumidor, “tal como aconteceu com o chamado "imposto Coca-Cola": as embalagens de 2 litros reduziram para 1,75 l e o preço aumentou”
Os consumidores, ao que parece, não se deixam de todo enganar por tais práticas comerciais um tanto duvidosas, beneficiando do poder nocivo das redes sociais. No Reddit, denunciaram uma redução no tamanho dos “cookies” Pringles ou da embalagem do gel de banho da Dove.
Em Setembro de 2020, os consumidores reagiram veementemente contra os artifícios de... um excesso de vácuo. Na verdade, quem nunca se desiludiu, nem mesmo se agastou solenemente, por abrir um pacote de batatas fritas bem cheias, apenas pela metade?
“O encolhimento pode criar um vácuo total, mas a inversa não é necessariamente verdadeira. No entanto, não há que recriminar todos os industriais. Na época, alguns tentaram justificar-se ”, acrescenta Camille Dorioz.
Uma tal investigação, iniciada pela Foodwatch, havia denegrido certas marcas, em particular uma embalagem de cereais com a insígnia do Carrefour.
“O Carrefour ligou à Foodwatch duas horas após a denúncia pública. Desde então, o Carrefour reduziu o tamanho de suas embalagens, cônscio do paradoxo de tal prática com sua política de RSE [responsabilidade social corporativa] ”.
Na União Europeia, o fenómeno de produtos os mesmos (aparentemente os mesmos) com composição distinta e preço igual faz o seu curso desde 2017.
Por Comunicação de 29 de Setembro de 2017, ínsita no Jornal Oficial, a Comissão Europeia despertou para o fenómeno das possíveis práticas desleais na comercialização de produtos alimentares diferenciados no Mercado Único (a duas velocidades e com consumidores de primeira e de segunda… na galeria dos consumidores)
A informação insuficiente sobre as diferenças em termos de produtos comercializados sob uma mesma marca pode influenciar as decisões de transacção dos consumidores, ali se adverte.
“Após verificarem a conformidade com a legislação alimentar da UE, quando as autoridades responsáveis pela aplicação da lei dispõem de informações específicas que as levam a concluir, após uma análise casuística, que as práticas de diferenciação de um determinado operador do sector alimentar podem resultar em práticas comerciais desleais, impõe-se estudem a possibilidade de efectuar testes de mercado que envolvam as comparações de produtos em diferentes países e regiões. Estes testes devem ser realizados segundo a abordagem harmonizada comum para essas verificações em que a Comissão está actualmente a trabalhar. O resultado deste trabalho poderá fornecer mais elementos de prova e recomendações para a questão em causa.
Caso os testes identifiquem produtos alimentares que:
§ tenham uma apresentação aparentemente idêntica;
§ são comercializados sob a mesma marca;
§ porém, apresentam diferenças significativas em termos de composição e/ou perfil sensorial,
as autoridades competentes em matéria de execução devem avaliar, caso a caso, a necessidade de uma investigação mais aprofundada para verificar se os produtos em causa foram comercializados em conformidade com a directiva relativa às práticas comerciais desleais, nomeadamente com a obrigação de se comportarem com a devida diligência profissional…
Na elaboração de uma tal avaliação casuística, a lógica subjacente à diferenciação do produto, bem como os seguintes elementos deverão ser tomados em conta, com base em factos concretos e nas circunstâncias de cada caso particular, a fim de avaliar se são susceptíveis de influenciar o comportamento dos consumidores:
§ A apresentação de um produto ou a sua publicidade, que poderiam incentivar os consumidores a acreditar que o produto é o mesmo em todo o mercado único, salientando a sua especificidade, origem da sua primeira produção, originalidade, forma única de produção tradicional ou receita, conformidade com uma receita criada há muitos anos num local específico, etc.
§ As diferentes versões das estratégias de comercialização de um produto que são potencialmente confusas para os consumidores. Por exemplo, na sua estratégia de distribuição, o operador de empresa que distribui diferentes categorias de qualidade em todo o mercado único, vende apenas qualidades inferiores em determinadas regiões/países, sem informações suficientes para permitir que os consumidores compreendam que grau está disponível no seu mercado local.
§ A falta ou a insuficiência de informações transmitidas aos consumidores (através de qualquer meio de comunicação pública) sobre o facto de os elementos da composição dos produtos sofrerem alterações significativas em comparação com o passado (por exemplo, introdução de uma nova receita), tendo simultaneamente em conta as alterações da composição, no contexto da reformulação das políticas nutricionais dos Estados-membros, em consonância com o requisito da diligência profissional.
O problema assume proporções dramáticas porque se “carrega” nos países onde o poder de compra se acha degradado, oferecendo às suas populações produtos de qualidade inferior aos mesmos preços que os “originais” dispensados em mercados mais florescentes e mais exigentes…
Os “pobres” (de carteira como de espírito…) pagam sempre mais!
Aliás, adverte-se para o facto de a redução operada, em si, não constituir eventual ilícito se se compaginar com o que emerge da rotulagem.
Se assim não for, entre nós a moldura típica é a da “fraude sobre mercadorias” que o artigo 23 da Lei Penal Económica desenha como segue:
“1 - Quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, fabricar, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias:
a) Contrafeitas ou mercadorias pirata, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas;
b) De natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem,
será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine pena mais grave.
2 - Havendo negligência, a pena será de prisão até 6 meses ou multa até 50 dias.
3 - O tribunal poderá ordenar a perda das mercadorias.
4 - A sentença será publicada.”
No Brasil, o fenómeno assume proporções assaz desviantes.
O Ministro da Justiça e da Segurança Pública, que detém as rédeas da política de consumidores, fez baixar muito recentemente uma provisão legislativa – a Portaria n.º 392/2021, de 29 de Setembro - que “dispõe sobre a obrigatoriedade da informação ao consumidor em relação à ocorrência de alteração quantitativa de produto embalado posto à venda.”
Estejamos atentos, que não estamos imunes ao fenómeno neste “jardim à beira-mar plantado” (epíteto com que se mimoseia o Portugal do ocidente europeu)!
Aliás, aos consumidores uma recomendação oportuna: “gato escaldado de água fria tem medo”!
Nada nos diz que no que tange ao papel higiénico ou aos rolos de papel cozinha tal não esteja já a ocorrer… como, de resto, ao pão e a outras especialidades do estilo!
No Reddit, como se assinalou, há denúncias precisas acerca redução no tamanho dos ‘cookies’ Pringles ou das embalagens de gel de banho da Dove…
Mais próximo da nossa porta, a padaria de que nos abastemos terá reduzido de 60 para 40 grs. o pão-preto, mas ter-se-á “olvidado” de abater no preço…
Coisas tão simples que nos passam (!) despercebidas e pelas quais não erguemos um dedo sequer para as impugnar, para as contestar, para as pôr em causa…