O
nosso preito de homenagem a Catarina de Albuquerque, que connosco cooperou
intensamente e nos deixou, há dias, na flor da idade: primeira Relatora
Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento
entre 2008 e 2014, teve decisivo papel no reconhecimento do direito à água
potável e ao saneamento básico como Direito Humano Universal (Assembleia-Geral
de 28 de Julho de 2010).
O Conselho de Direitos Humanos, a 30 de Setembro de 2010, reiterou a deliberação
e destacou o direito à água e saneamento como inalienável componente do direito
a um nível de vida adequado, em paralelo com o direito à habitação ou à
alimentação.
Como
corolário, jamais se deveria consentir na suspensão de fornecimento de água aos
cidadãos. Como, aliás, o fazem determinados países em consonância com os
princípios sufragados.
Eça de Queiroz, de
certa feita, surpreendido com um inopinado “corte” de água, endereçou ao
Director da Companhia da Águas,destacado elemento do Partido Legitimista, o
Senhor Pinto Coelho, uma carta hilariante, com o perfume do tempo:
“Dois factores
igualmente importantes para mim, me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes
regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças
carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água
na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas
e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover
duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade
da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna
de exacerbar até às lágrimas, a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o
meu contador, Exm.º Senhor, que eu o interponha nas relações de V. Ex.ª com o
mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político,
caiam na minha banheira.
E pago este tributo
aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos
contratos. Em virtude de um escrito devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim,
temos nós - um para com o outro - certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para
com V. Ex.ª pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o
preço da água que consumisse.
V. Ex.ª, pela sua
parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V. Ex.ª
fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não
pagar; V. Ex.ª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V.
Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não fornecer, o que
hei-de eu fazer com o Senhor?
É evidente que, para
que o nosso contrato não seja verdadeiramente leonino, eu preciso, no caso
análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a minha canalização, de cortar alguma
coisa a V. Ex.ª. Oh! e hei-de cortar-lha!...
Eu não peço
indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço
explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em
dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos.
Quero apenas esta
pequena desafronta, bem simples e razoável, perante o direito e a justiça
distributiva; quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!
Rogo-lhe, Exm.º
Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem
evasivas nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno
direito, eu possa cortar a V. Ex.ª
Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª,
Com muita consideração
e com umas tesouras…”
A generalidade dos
ordenamentos jurídicos continua a permitir a “excepção de não cumprimento”:
quem não cumpre sujeita-se ao corte do fornecimento.
Os franceses, de forma
modelar, ditaram sentença de morte ao
corte!
Se sobrevier o não
pagamento, cobrança por outros meios, à margem da coacção induzida pelo corte .
Para além de medidas
avulsas, Portugal, ao invés da Espanha e da França, não tem, ao que parece, uma
política firme no domínio da água. As entidades gestoras agem a seu bel
talante.
Muita água correrá
ainda por baixo das pontes até que países como o nosso, pouco flexíveis nas
suas políticas de “esquerdo, direito, um dois…”, levem às últimas consequências
a circunstância de a água e o saneamento serem direito humano.
Há coisas elementares.
Não podem cair em olvido. Porque se prendem com o quotidiano das gentes. Mas
desafortunamente é o que sucede!
Teremos de continuar a
agitar as águas… para que se possa ter uma diferente consideração para com os
consumidores da água.
Da água, direito
humano! Com norte e... sem corte!
Mário Frota
presidente emérito da apDC - DIREITO DO CONSUMO -
Portugal