(Publicado a 24 de Agosto de 21, no Portal do PROCON RS)
Eça de Queiroz
(1845-1900) foi, de certa feita, surpreendido em Portugal com um inopinado
“corte” de água.
Endereçou, na
circunstância, ao Director da Companhia da Águas uma carta hilariante, que
circulava ao tempo.
Trazêmo-la à
contemplação dos que hoje se confrontam, quantas vezes, com situações análogas,
impotentes em fazer valer os seus direitos.
Eis a missiva com o
fino recorte de Eça:
«Exm.º Senhor Pinto
Coelho
- Digno director da
Companhia das Águas e
Digno membro do
Partido Legitimista –
Dois factores
igualmente importantes para mim, me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes
regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças
carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água
na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas
e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover
duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade
da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna
de exacerbar até às lágrimas, a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o
meu contador, Exm.º Senhor, que eu o interponha nas relações de V. Ex.ª com o
mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político,
caiam na minha banheira.
E pago este tributo
aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos
contratos. Em virtude de um escrito devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim,
temos nós - um para com o outro - certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para
com V. Ex.ª pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o
preço da água que consumisse.
V. Ex.ª, pela sua
parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V. Ex.ª
fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não
pagar; V. Ex.ª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V.
Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não fornecer, o que
hei-de eu fazer com o Senhor?
É evidente que, para
que o nosso contrato não seja verdadeiramente leonino, eu preciso, no caso
análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a minha canalização, de cortar alguma
coisa a V. Ex.ª. Oh! e hei-de cortar-lha!...
Eu não peço
indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço
explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em
dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos.
Quero apenas esta
pequena desafronta, bem simples e razoável, perante o direito e a justiça
distributiva; quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!
Rogo-lhe, Exm.º
Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem
evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu
pleno direito, eu possa cortar a V. Ex.ª
Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª,
Com muita consideração
e com umas tesouras…”
A água e o saneamento
são hoje direitos humanos.
Como tal,
insusceptíveis de “corte”, de suspensão.
A generalidade dos
ordenamentos jurídicos continua a permitir a "exceptio non adimpecti
contractus" (a excepção de não cumprimento: quem não cumpre, expõe-se a
que lhe seja cortado o fornecimento… enquanto não cumprir!).
Ou seja, é lícito
cortar o fornecimento a quem não pague no tempo e no lugar próprios o preço, a
prestação regular…
Em Portugal, tal
previsão consta do Código Civil (artigo 428.º)
“1. Se nos contratos
bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada
um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro
não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
2. A excepção não pode
ser afastada mediante a prestação de garantias.”
Mas é de direitos
humanos que se trata.
Os franceses, de forma
modelar, decretaram, há anos, que o serviço de distribuição predial de águas é
insusceptível de corte, de suspensão.
Se acaso houver
incumprimento por mor do não pagamento das facturas regularmente emitidas, a
cobrança efectuar-se-á por outros meios que não os resultantes da coacção
exercida mediante a suspensão do regular fornecimento do produto ou do serviço.
A comunidade
internacional reconheceu, com efeito, o direito à água e ao saneamento como
direito humano, há já 11 anos.
A Assembleia-Geral das
Nações Unidas, a 28 de Julho de 2010, adoptou uma resolução na qual reconhece a
água potável e o saneamento como um direito humano essencial para o pleno gozo
da vida e de todos os direitos humanos.
Instou, na
circunstância, os Estados e as organizações internacionais a assegurar os
recursos financeiros, formação e transferência de tecnologias necessários,
através de assistência e cooperação internacionais, com vista a melhorar o
acesso à água e ao saneamento aos povos de todas as latitudes.
O Conselho de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas, a 30 de Setembro de 2010,
• reafirmou a decisão
e
• destacou que o
direito à água e saneamento constitui componente inalienável do direito a um
nível de vida adequado, tal como o direito à habitação ou à alimentação.
“O Conselho colocou
destarte O DIREITO À ÁGUA E SANEAMENTO em pé de igualdade com um conjunto de
outros direitos humanos outrora reconhecidos.”
Não deveriam poder,
pois, as entidades gestoras dos serviços de distribuição predial de águas usar
da “excepção de não cumprimento” para suspender o fornecimento da água e o
correlato saneamento, o serviço de efluentes. Exactamente por se tratar de
DIREITO HUMANO.
A discussão sobre o
pagamento de facturas por solver far-se-á sempre noutra sede com os
instrumentos de que dispõem os fornecedores para não se verem privados dos
valores que lhes naturalmente competem pelo fornecimento.
Não se tratar de
advogar o fornecimento gracioso do preciso líquido a todos e a cada um.
Ou encorajar,
estimular o incumprimento, bem entendido!
Antes de transferir a
cobrança das facturas indébitas para meios outros que não esta execução célere
de quem tem, afinal, a faca e o queijo na mão, a tesoura pronta a cortar onde
não deve…
Para além de medidas
avulsas, adoptadas localmente, Portugal, ao invés, entre outros, da Espanha e
da França, não tem, ao que parece, uma política firme, em particular no que
tange à água. E, em especial, durante o período que transcorre, ainda dominado
pela pandemia que assola o globo.
Cada uma das entidades
gestoras age a seu bel talante.
Mesmo no decurso da
pandemia, que subsiste, Portugal teve, através das entidades gestoras,
comportamentos diferenciados e errantes.
Como noutro ensejo o
dissémos:
“Umas reduziram o tarifário.
Outras isentaram de pagamento durante um dado período. Outras excluíram a
tarifa fixa que é, em si mesma, ilegal por se tratar de um consumo mínimo
proibido.
Outras ainda diferiram
o pagamento das facturas de Fevereiro e, eventualmente, a de Março… do ano
transacto!
A despeito das
proibições de corte, sucessivamente decretadas (e que ora se estendem até
finais do ano de 2021, por mor de recente intervenção do Governo), empresas
gestoras houve que efectuaram “cortes” não só na água, mas em outros serviços
essenciais, em situação de aparente distracção que em circunstância alguma se
tolera ou escusa.
Muita água correrá
ainda por baixo das pontes até que países como os nossos, pouco flexíveis nas
suas políticas de “esquerdo, direito, um dois…”, levem às últimas consequências
a circunstância de a água e o saneamento serem direito humano.
Há coisas que são
elementares. Não podem cair em olvido. Porque se prendem com o quotidiano de
cada um e de todos. Mas desafortunamente é o que acontece!
Teremos de continuar a
agitar as águas… para que se possa ter uma diferente consideração para com os
consumidores da água. Da água, direito humano!
Mário Frota
Presidente emérito da apDC
– DIREITO DO CONSUMO - Coimbra