“Oito
meses após a apresentação de uma factura de água, a empresa municipal apresenta
uma nova factura com diferenças consideráveis, sendo que o valor exigido monta
a € 857.30.
A
justificação é a de que se trata de uma recuperação de consumos que não foram
devidamente contados e que o facto tem fundamento na lei: invoca-se o DL
194/2009: n.º 2 do art.º 67).
Pelo
sim, pelo não, invoquei a prescrição.
Exigem-me
as diferenças com ameaças da remessa da factura para as execuções fiscais.”
Ante
a questão ora suscitada, cumpre dizer o que se nos oferece à luz dos textos em
vigor:
1.
Um
dos corolários do princípio da protecção dos seus interesses económicos,
constitucionalmente consagrado, é o de que “o consumidor deve pagar só o que
consome na exacta medida do que e em que consome” (Const.ão da
Rep.ª: n.º 1 do art.º 60).
2.
A
periodicidade da factura é mensal e normal, em obediência a um tal princípio, é
que as leituras se processem, de modo regular, mensalmente (Lei 23/96: n.º 1 do
art.º 9.º)
3.
Conquanto
na Lei dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água avulte um
preceito segundo o qual “a entidade gestora deve proceder à leitura real dos
instrumentos de medição por intermédio de agentes devidamente credenciados, com
uma frequência mínima de duas vezes por ano e com um distanciamento máximo
entre duas leituras consecutivas de oito meses” (DL 194/2009: n.º 2 do art.º
67), é flagrante a sua inconstitucionalidade face ao que se diz no passo
precedente (factura mensal, leitura real).
4.
Refere
a consulente que invocou, à cautela, a prescrição: não é, ao que se nos
afigura, de prescrição que se trata, antes de caducidade do direito à diferença
de preço.
5.
Com
efeito, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço,
tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o
direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses
após aquele pagamento” (Lei 23/96: n.º 2 do art.º 10.º).
6.
As
execuções fiscais não são o meio processual apropriado (serviços públicos,
contratos privados), ao que se nos afigura: “O prazo para a propositura da
acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados … do
pagamento inicial…” (Lei 23/96: n.º 4 do art.º 10)
7.
Ainda
que os serviços reclamem o direito à diferença do preço, a caducidade do
direito já operou, como, aliás, a caducidade do direito de acção (para se
instaurar os competentes autos em juízo).
8.
Ora,
a caducidade do direito de acção é de conhecimento oficioso, não carecendo,
pois, de invocação:
“I - A interpretação conjugada dos
arts. 10.º e 13.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, aponta no sentido de que a
caducidade é, aqui, de conhecimento oficioso.
II - A caducidade extingue os efeitos jurídicos do direito em virtude de um
facto jurídico stricto sensu,
independentemente de qualquer manifestação de vontade. (STJ: AC. 03.Nov.2009, cons.º
Paulo de Sá)
9.
Caducando
quer o direito à diferença do preço quer o direito de acção (pelo transcurso de
mais de seis meses), nada terá de pagar pelos desequilíbrios que em geral
situações destas causam aos orçamentos domésticos.
EM CONCLUSÃO
a.
Por violação do princípio da protecção dos
interesses económicos, a facturação por estimativa é inconstitucional (CRP: n.º
1 do art.º 60).
b.
A
factura correspondente a uma diferença de preço com oito ou mais meses em
relação ao pagamento inicial está ferida de caducidade: o direito à diferença
caducou (Lei 23/96: n.º 2 do art.º 10.º).
c.
Como
caducou o direito de acção: o tempo dentro do qual a acção poderia ter sido
proposta sem qualquer.
d.
A
caducidade do direito de acção, segundo doutrina do Supremo Tribunal de
Justiça, é de apreciação oficiosa pelos tribunais (Lei 23/96: art.ºs 10 e 13,
em conjugação).
e.
Não
carece, pois, de ser invocada pela parte a quem aproveita para ser eficaz.
Eis,
salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário
Frota
presidente
emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal