sexta-feira, 14 de março de 2025

PAGAMENTOS EM MOEDAS E NOTAS

Francisco Rodrigues Rocha*

 Resumo: Pretendemos, com o texto que segue, discorrer criticamente sobre algumas limitações a pagamentos em moedas e notas, mesmo de montantes inócua e relativamente baixos, bem como sobre aquilo que se perfila como uma tendência para a imposição generalização de pagamentos electrónicos.

 Palavras-chave: dinheiro físico – dinheiro escritural – serviços de pagamento – pagamentos electrónicos – moeda com curso legal forçado

 Sumário: 1. Introdução; 2. A tendência para um reconhecimento generalizado de dinheiro escritural bancário; 3. A oportuna preservação de curso legal forçado do dinheiro dito físico; 4. Conclusão.

 

 1. Introdução

I. A sociedade muda muito rapidamente. Em poucas gerações, senão mesmo em poucas décadas, no ciclo de uma mesma geração, assistimos, em sociedades cada vez mais plurais, mas também heterogéneas, a mudanças sociais profundas. O dinheiro é uma delas. Surto, como meio de troca, na primeira metade do último milénio antes de Cristo, trazendo ainda consigo, no nome latino, pecunia, a marca anterior, o dinheiro (denarius) desmaterializou-se e o uso de meios de pagamento electrónicos aumentou a um ritmo tal que não é descabido considerar a sua substituição num futuro próximo. A desmaterialização do dinheiro, note-se, não é recente; basta pensar no cheque.

Dos benefícios de uma total desmaterialização temos dúvidas. Temo-las não apenas de uma perspectiva social, económica, mas jurídica (se é que esta possa sequer prescindir das outras): se o direito é constituído por causa das pessoas e deve servi-las, se devemos atender aos mais vulneráveis, se devemos optar pelos meios que melhor preservem a nossa privacidade, se devemos preferir aqueles que melhor nos façam ponderar o impacto sobre as nossas finanças pessoais, se devemos preferir meios mais fiáveis, o dinheiro físico[1] deve ser mantido.

 

II. Sobre este tema não tem a doutrina nacional escrito o suficiente[2]. Ele é, todavia, importante; é um problema que, não obstante não aparecer devidamente representado nas decisões dos tribunais, ganha expressão nas reclamações recebidas por autoridades de supervisão e regulação e nos problemas quotidianos que nonnullae pessoas enfrentam.

De facto, nas últimas duas décadas, têm-se os especialistas ocupado do problema exactamente oposto àquele que nos leva agora a escrever: o da eficácia liberatória, extintiva, do pagamento através de dinheiro escritural bancário[3]. Praticamente resolvido este, importa agora dar-se um passo atrás para contemplar (o estado em que ficou e para proteger) algo que era dado como adquirido e que, no meio do «processo», quase irremediavelmente se perdia: o dinheiro em moedas e notas, tradicionalmente o «dinheiro-dinheiro». O período da pandemia de covid-19, com os confinamentos e depois distanciamentos sociais, viu aumentar exponencialmente o uso de meios electrónicos de pagamento, a distância[4], estado de coisas que, por comodidade ou por fomento de alguns actores políticos e económicos, acabou depois por manter-se.

 2. O curso legal forçado de moedas e notas, apesar da tendência para um reconhecimento generalizado de dinheiro escritural bancário

I. Conforme escrevíamos, surgiram, nas duas últimas décadas, vários escritos sobre o reconhecimento de eficácia liberatória ao pagamento por meio de dinheiro escritural bancário[5]. Tornou-se um tema da moda. E tinha tudo para se tornar: multiplicavam-se os meios de pagamento escriturais, electrónicos; aumentava o número de transacções por estes meios, que já existiam sob diversas formas, mas que a internet veio moldar em termos que os dotaram de uma celeridade e eficácia notáveis; o comércio a distância expandia-se; abria-se paulatinamente um mundo de possibilidades para e através dos pagamentos a distância; também no «mundo jurídico», surgiam normas regulamentares das autoridades de supervisão e, sobretudo, novas leis ao nível da UE[6], pouco depois transpostas ou garantida a sua execução por meio de diploma interno. As razões para a atribuição de eficácia liberatória ao pagamento com dinheiro escritural foram e permanecem várias. Não obstante dependerem de cada regime em concreto, sobressaltam os motivos de prevenção da evasão fiscal e de facilitação de transacções em linha, a distância[7], mas também a diminuição de custos administrativos com serviços de recepção e realização de pagamentos em numerário e custos de deslocação, sobretudo quando esteja em causa o cumprimento de obrigações em massa, como sucede tipicamente nas relações tributárias ou com grandes empresas, de serviços essenciais[8].

Em tese, poderíamos separar entre as normas que vieram admitir pagamentos por meios electrónicos (normas permissivas) e as que os impuseram (normas impositivas) de forma excludente proibindo pagamentos em «numerário»[9]-[10]; poderíamos também pensar que, «evolutivamente», viriam primeiro as normas permissivas e apenas num segundo momento as impositivas, o que, todavia, nem sempre ocorre(u)[11]. Sucede, ainda, que a consagração de uma equiparação entre pagamentos em dinheiro físico e electrónico, no sentido de serem ambos admissíveis, não chegou a acontecer e ainda não aconteceu, prevendo-a, antes, o legislador para determinados sectores (cf., porém, e.o., os artigos 40.º/1 da LGT, 54.º do RJCS ou 48.º/6 do RJFP[12]; para pagamentos à segurança social, o artigo 76.º/2 do Decreto Regulamentar n.º 6/2018, de 2 de Julho; uma equiparação surge também em processo executivo: artigo 798.º/2 do CPC; cf. ainda os artigos 7:707 dos PECL e 2:108 dos DCFR). Acontecerá, previsivelmente, em futuro próximo a aprovação do proposto Regulamento do Euro Digital (artigo 7.º).

 Tudo isto sem menoscabo de o regime de base permanecer o do curso legal forçado de moedas e notas (artigo 550.º do CC), portanto do dinheiro físico[13].

Analisemos, então, o estado da questão, começando pelas normas, cada vez mais frequentes, que afastam o ainda regime de base.

 II. Como referido, é ponto assente que, desde o início deste milénio, várias normas vieram admitir ou, até, impor o pagamento através de meios electrónicos[14]. Isto sem embargo da possibilidade de as partes, afastando o regime nesta parte supletivo do artigo 550.º do CC, acordarem entre si, por meio de declarações expressas ou tácitas, o pagamento com dinheiro escritural[15]. As mais expressivas são as que respeitam aos pagamentos de particulares ao Estado, algumas das quais irradiam às relações entre particulares.

Desde logo, as contidas no preceito que mais alcance tem: o artigo 63.º-E da LGT[16], epigrafado precisamente «Proibição de pagamento em numerário», que impede «pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a € 3 000, ou o seu equivalente em moeda estrangeira» (n.º 1 do citado preceito), montante cujo cômputo leva em consideração «de forma agregada todos os pagamentos associados à venda de bens ou prestação de serviços», ainda que não o excedam de forma fraccionada (n.º 3)[17]. A regra aparenta acabar por se estender, mais cerce, a pagamentos acima de € 1.000, quando respeitem a pagamentos pelos sujeitos passivos do artigo 63.º-C/1 (os que estão obrigados a ter contas bancárias afectas exclusivamente à actividade empresarial) de facturas ou documentos equivalentes, ao exigir-se, nestes casos, que sejam feitos «através de meio de pagamento que permita a identificação do respectivo destinatário, designadamente transferência bancária, cheque nominativo ou débito directo» (artigo 63.º-E/2). O limite de pagamento em numerário passa a € 500 quando se trate do pagamento de impostos (artigo 63.º-E da LGT). Haverá ainda que considerar a imposição do pagamento apenas por meios electrónicos quando seja efectuado por pessoas colectivas e se trate de prestações tributárias ou outros créditos cobrados pela AT (artigo 40.º/2 da LGT) e a imposição de que os sujeitos passivos de IRC e os sujeitos passivos de IRS que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada «possuam», «pelo menos», uma conta bancária, «através da qual devem ser, exclusivamente[18], movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à actividade empresarial desenvolvida».

Também no domínio dos benefícios fiscais, a lei impõe que os donativos em dinheiro de valor superior a € 200 sejam efectuados «através de meio de pagamento que permita a identificação do mecenas, designadamente transferência bancária, cheque nominativo ou débito directo» (artigo 66.º do EBF)[19].

Existe, ainda, um número muito considerável de normas, não necessariamente tributárias, que prevêem e acabam por promover pagamentos ao Estado por meios electrónicos. Assim, desde logo, o artigo 30.º, sob a epígrafe «Meios automáticos de pagamento», do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril, que estabelece medidas de modernização administrativa: «[o]s pagamentos devidos à Administração Pública devem poder ser efectuados através da rede pública de caixas automáticas ou de terminais dedicados a pagamentos, em condições a acordar com as entidades gestoras de sistemas de transferência electrónica de fundos, com salvaguarda do registo das operações» (n.º 1); «[o]s serviços públicos devem fomentar a utilização progressiva de meios automáticos e electrónicos de pagamentos devidos à Administração Pública, com vista à substituição da exigência do cheque visado» (n.º 2); e «[s]empre que possível, a Administração Pública deve permitir igualmente pagamentos por transferência bancária, com salvaguarda do registo adequado das operações» (n.º 3).

Assim também, o regulamento do procedimento de constituição em linha de sociedades, aprovado pela Portaria n.º 155/2024/1, de 24 de Maio, determinando que o respectivo sítio electrónico permita «[o] pagamento, através de meios electrónicos, dos encargos que se mostrem devidos» (artigo 3.º/1 m)) e que o pedido em linha se faça da mesma forma (artigo 5.º/1 f)). Idêntico regime vale para o registo de veículos (artigos 2.º/2 f) e 9.º da Portaria n.º 99/2008, de 31 de Janeiro), para o «balcão do empreendedor» (artigo 18.º/4 do Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro), para o registo predial (artigos 3.º h) ou 22.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de Dezembro, com alterações), para o pagamento da taxa de justiça (artigo 9.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto); et sic deinceps.

 III. A imposição dos pagamentos com dinheiro escritural, não obstante a crescente e rápida generalização, não significa, por enquanto, a revogação do princípio do curso legal forçado de moedas e notas de euro (artigos 128.º/1, 2.ª prt., do TFUE, 10.º e 11.º do Regulamento (CE) n.º 974/98, de 3 de Maio, e 550.º do CC[20]; cf. também o artigo 7.º/1 do Decreto-Lei n.º 246/2007). Ele, é certo, deixou de ter o alcance que em tempos, até há relativamente pouco tempo aliás, teve. Contudo, mantém-se o princípio de base do nosso sistema jurídico[21].

Sobre os termos em que se mantenha vimos já algo, através do recorte negativo que o levantamento feito permitiu já. Haveria ainda que juntar algumas limitações, como, por ex., a constante do artigo 11.º in fine do Regulamento (CE) n.º 974/98, aplicável a pagamentos em moedas (não notas): «(…) ninguém pode ser obrigado a aceitar mais de cinquenta moedas num único pagamento»[22] (também o artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º 246/2007).

Importa, agora, no entanto, ver positivamente os casos em que se mantenha e deva manter-se o referido princípio.

 3. A oportuna preservação de curso legal forçado do dinheiro dito físico

I. Apesar do crescente reconhecimento de eficácia liberatória ao dinheiro escritural bancário, que comporta vantagens várias[23], é oportuna a preservação do curso legal forçado do dinheiro dito físico. Trata-se de uma oportunidade muito estritamente jurídica, incluindo num sentido etimológico, histórico-jurídico (oportere), mas também num sentido mais corrente, temporal.

Com efeito, o pagamento em dinheiro físico[24]:

(i)     permite solver dívidas sem intermediários. O pagamento com moeda escritural, v.g. bancária, exige a intervenção de um terceiro por referência à relação na qual se postula o cumprimento da obrigação pecuniária. Esta intervenção determina também, até certo ponto, uma ingerência do terceiro (ainda que da relação se abstraia, também até certo ponto) e mesmo o pagamento directo ou indirecto de comissões[25];

(ii)  pode ser efectuado sem equipamento específico, sejam cartões, computador ou telemóvel, sem contratos de utilização de software, sem contratos de serviços de telecomunicações, sem ligação à internet, ou mesmo sem ligação à corrente eléctrica. Pode ser, por isso, utilizado na ausência de todos estes aparelhos (ou na impossibilidade de os adquirir) ou energia para os alimentar, quando tais aparelhos não tenham bateria (mais frequente do que possa imaginar-se) ou rede, quando tenham alguma falha, quando estejam em actualizações, em «inicializações» de sistema; quando não se tenham celebrado aqueles contratos ou quando, por algum motivo, cessem inesperadamente ou sofram de alguma perturbação que determine uma interrupção do serviço (por ex., uma falha na rede de internet por sobre-utilização como aconteceu em período de pandemia); quando haja falhas gerais nos sistemas de pagamentos[26]; quando alguém tenha perdido o seu cartão de pagamento ou se veja por algum motivo temporariamente privado do mesmo;

(iii)                       garante a protecção de dados pessoais e, mais amplamente, a privacidade do pagador e mesmo do credor. Num mundo cada vez mais interconectado, em que tudo o que fazemos é cada vez mais, em termos quase intoleráveis, passível de rastreio, de controlo, de devassa, seja pelos bancos, seja pelo fisco (directamente ou através da banca), o pagamento com dinheiro físico acaba, sem que se esperasse, por tornar-se uma espécie de espaço de liberdade, de que prescindir se antolha como uma violência;

(iv) é mais «inclusivo», na medida em que permite a todos efectuar pagamentos, tenham ou não acesso aos aparelhos, energia ou contratos acima mencionados, o que normalmente sucede com grupos de cidadãos (mais) vulneráveis, como pessoas de mais avançada idade ou pessoas com rendimentos baixos[27]; é uma forma mais eficaz de garantir um «direito de não ficar para trás»; acabam por traduzir um serviço essencial[28] – é importante lembrar, o que muitas vezes se esquece, que, em 2022, em Portugal, 1.900.000 de pessoas se encontrava em risco de pobreza, ou seja, viva com rendimentos inferiores a € 591 mensais, valor que aumenta para 2.100.000 (mais de 1/5 da população), se se considerar quem não tem capacidade financeira para adquirir bens essenciais (risco de pobreza e exclusão social)[29];

(v)   proporciona psicologicamente um maior controlo de despesas: permite-nos uma melhor percepção do dinheiro que temos e das importâncias que gastamos; noutros termos, de as pessoas tomarem maior consciência das quantidades despendidas[30]; o dinheiro físico em mão é disciplinador: quem levanta dinheiro num determinado dia acaba consciente ou inconscientemente por cingir as suas decisões de compra ao dinheiro que tem consigo, evita a deslocação física a um terminal para levantar mais, vê-o esvair-se da sua conta, depois das suas mãos, de forma mais palpável, com uma mais exacta noção da sua finitude, ao invés de realizar sempre transacções com meios de pagamento ligados à totalidade da sua liquidez escritural, da conta que transportam na carteira sob a forma de cartões;

(vi) é rápido, sobretudo se compararmos com transferências bancárias «tradicionais», com IBAN, que exijam instrumentos de pagamento e validações; e não é necessariamente menos veloz, mesmo se compararmos com pagamentos através de cartões em terminais, que também exigem que se retire o cartão e depois validações em terminal e que, quando feitos por meio de instrumentos como telemóveis, podem revelar-se menos céleres do que pareça (leitura errada de código QR, NFC, demora em abrir aplicação, erros, actualizações, etc.);

(vii)                      é seguro: face ao cibercrime e fraudes (pense-se nos não raros e cada vez mais sofisticados phishing ou pharming); é imune a riscos sistémicos como os de insolvência ou medidas de resolução sobre bancos (pense-se no caso BES e nos limites de funcionamento dos fundos de garantia, como é o caso do FGD entre nós);

(viii)                    constitui uma «reserva de valor», que pode ser guardada e conservada, consentindo eficazmente o aforro; pelas razões enunciadas no ponto anterior, esta poupança é por princípio imune a riscos sistémicos de entidades terceiras que detenham ou tenham registado o dinheiro; não é preciso pagar valores a terceiros para que giram contas e «guardem» os fundos.

Não se interprete o que escrevemos como denegação dos muitos benefícios proporcionados pelos pagamentos por meios electrónicos. Não se trata de todo disso. Eles evitam deslocações para pagar e com isso eliminam de imediato uma dívida e um problema que consome tempo e disponibilidade; potenciam, por isso, a contratação a distância e electrónica; evitam deslocações para levantar dinheiro; permitem, como é o caso dos débitos directos mas não só, um eficaz agendamento e calendarização de pagamentos evitando-se atrasos com as inerentes consequências; têm aparentemente um menor impacto ambiental[31]; etc. Trata-se, sim, de manifestar-nos contra a supressão do dinheiro físico e, com ela, das inerentes vantagens que comporta; de evitar aquilo que paradoxalmente pode acabar por ser um retrocesso civilizacional. Supressão de dinheiro físico que já se faz sentir um pouco por toda a parte, desde logo com as limitações à sua circulação com propósito de prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo (em moldes exagerados, pois não justifica por si só todas as restrições que se têm imposto); com o projecto de euro digital (que não parece determinar o fim do dinheiro físico, mas que acaba por fragilizar a sua posição)[32], que tarda mas parece inexorável; com a socialmente excludente supressão de terminais de levantamento[33]-[34], mais alarmante ainda em locais remotos ou ermos; com a imposição, não sancionada a nível contra-ordenacional, da recusa de pagamentos de moeda com curso legal em certos estabelecimentos; etc. Parece também haver interesse em que assim suceda: da parte do Estado, que evita pessoal e meios afectos aos pagamentos com dinheiro físico e, sobretudo, permite à sua administração tributária um controlo muito eficaz idealmente de todas as transacções no território, passíveis de taxação, diminuindo fraudes e aumentando desejavelmente a receita fiscal[35]; da parte das instituições de crédito, que evitam uma rede de manutenção de terminais, transporte de dinheiro, pessoal afecto a estas áreas, gestão das mesmas, e que controlam mais eficazmente todos os valores e vêem o dinheiro físico «de volta» ao banco, sob forma integralmente escritural; da parte das grandes empresas, por uma mais eficaz gestão de pagamentos e pessoal à mesma afecto, por um aumento aparente da capacidade de compra dos consumidores, pelas condições que propicia de expansão do negócio a distância. Dir-se-ia principiis obsta respice finem, mas talvez já estejamos mais próximos do fim que do princípio…

 II. Existem situações, aspecto por vezes esquecido, em que a lei impõe, em termos exclusivos, o pagamento em dinheiro físico.

Isto sucede, por boas razões, em matéria de jogos: «[o]s jogos [de fortuna ou azar] podem praticar-se com a utilização efectiva de moeda com curso legal no território português» (artigo 59.º/1 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, com sucessivas alterações)[36]. A interpretação de «utilização efectiva» é discutível; o sentido com que, todavia, ainda hoje é percepcionado por um número considerável de estabelecimentos que comercializam tais jogos e apostas é o de que o pagamento deve ser em dinheiro físico[37]. E isto não obstante esta regra ter sido, entretanto, afastada no domínio dos jogos e apostas em linha (artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 66/2015, de 29 de Abril), naquilo que representa uma manifesta contradição normativa, valorativa[38]-[39]. Note-se: a imposição da utilização efectiva de moeda tinha, como se escrevia, boas razões; apostar com dinheiro electrónico poderia fazer elevar os montantes envolvidos (jogar-se-ia, através do cartão, com todo o dinheiro que se tem em conta, não apenas com o que se tem em mão ou se consegue naquele dia levantar) e, não obstante a disparidade de perfis de jogadores, acaba por ter um diferente impacto psicológico.

 III. Existem igualmente situações em que o pagamento em dinheiro físico se impõe[40] – também no sentido de impedir que uma das partes imponha pagamentos por meios electrónicos –, pela boa fé, a título de dever acessório, visando a cabal satisfação do interesse do credor sem lhe causar danos, em termos obviamente a aquilatar segundo as circunstâncias de cada caso.

Desde logo, segundo cremos, em pagamentos de pequenos montantes[41]-[42]. Pagar 2 pastilhas elásticas de € 1 por meios electrónicos, designadamente cartão de débito, pode fazer pouco sentido. No mercado, comprar 2 kg de pêssegos, a € 3 também. Exemplos destes, da vida quotidiana, sucedem-se. O «fazer pouco sentido» pode basear-se em razões plúrimas: desde logo, a imposição aos comerciantes de terem um terminal de cartões para o efeito, com os inerentes custos; ou o pagamento de comissões a instituições bancárias por cada transacção, além das próprias comissões de manutenção e gestão de contas.

Depois, nas transacções entre particulares ou com sujeitos passivos de IRS que não estejam sujeitos a contabilidade organizada, o facto de o titular do crédito pecuniário não dispor de conta bancária ou, vice-versa, o próprio pagador da mesma não dispor[43]. A situação é obviamente marginal, a «essencialidade» da conta nos dias que correm é tal que existe até um regime para conta de serviços mínimos bancários e fala-se de um «direito à conta», mas não pode ser afastada[44]. Uma conta comporta custos de gestão, comissões, e hoje em dia, sobretudo por causa da legislação sobre prevenção de branqueamento de capitais e protecção de dados, um processo altamente burocrático. Um dos intervenientes na operação pode assim não dispor de conta bancária; a ser o caso, o pagamento com dinheiro escritural bancário deixa de ser possível[45].

Podemos pensar em várias outras situações. Pense-se, por ex., num turista que se desloca a outro país e que, para evitar pagar elevadas comissões ou receando haja poucos terminais de levantamento[46], prefere levantar dinheiro no país de origem. Preferirá naturalmente pagar com dinheiro a contado no país de destino. Pense-se também nos casos em que um comerciante não disponha de uma máquina ou terminal de pagamento automático[47], não funcione, esteja a fazer actualizações, ou não tenha bateria; o comerciante pode mesmo ter estabelecimento num local que não tenha rede que permita um funcionamento regular de tal tipo de aparelho.

 IV. De há uns poucos anos para cá, têm sido noticiados casos em que determinadas empresas impedem os seus clientes de pagar com dinheiro físico. Em causa estão pagamentos de montantes baixos (por ex., restauração, panificação, etc.). Estribam-se, por vezes, tais limitações em razões de higiene, segurança e celeridade na transacção. São justificações que valem o que valem e que generalizadas e levadas ao extremo poderiam determinar amplas excepções em vários sectores de actividade (todo o sector de restauração, por ex.) ao princípio do curso legal forçado de moedas e notas. O princípio do curso legal forçado impera também aqui. Salvo se a boa fé exigir diversamente[48], o profissional está obrigado[49] a aceitar pagamentos em moedas e notas, sob pena de mora sua (artigo 813.º ss., max. 816.º, do CC), que é uma sanção civil.

Faltam, todavia, sanções contra-ordenacionais ou penais. Outros países da UE, como Espanha, têm-nas previsto. É possível, todavia, que entre nós não sobrevenham, considerando os (a)normais atrasos do legislador nacional e em face do projectado Regulamento do Euro Digital. A proposta de Mário Frota poderia bem ser seguida: a coberto da Directiva omnibus (2019/2161, de 27 de Novembro), a introdução de sanções contra-ordenacionais na Lei n.º 24/96, em articulação com a LCCG, cujo artigo 31.º-A, aditado pelo Decreto-Lei 109-G/2021, de 10 de Dezembro, já as prevê em linha com o RJCOE[50]. De resto, corrigir-se-ia uma contradição normativa, valorativa: hoje penaliza-se, a título de ilícito contra-ordenacional, a recepção de dinheiro físico, mas não a imposição de meios electrónicos de pagamento face ao princípio do curso legal do dinheiro físico... assim, penalizar-se-iam ambas.

 4. Conclusão

Como reconhece o BCE, o numerário preserva «características únicas», que lhe garantem relevância futura, não obstante a concorrência dos meios electrónicos de pagamento[51]. Talvez nem todas essas «características» sejam únicas, mas sim mais proeminentes no dinheiro físico a ponto de lhe assegurar vantagens em comparação com os pagamentos electrónicos.

No entanto, a utilização do dinheiro físico decai. A hegemonia dos pagamentos electrónicos antevê-se num futuro próximo. Deste estado de coisas não beneficiam, todavia, os mais vulneráveis; pelo contrário. Parece óbvio que um direito que seja feito por causa das pessoas deva protegê-los. A manutenção do dinheiro físico parece, igualmente, ser querida por um largo sector da população, em Portugal como noutros países da UE; e é, por enquanto, ainda que tibiamente, tutelada pelas instituições da UE. Seria importante manter a possibilidade de pagamentos em dinheiro físico, em paralelo aos electrónicos. Para isso e perante o estado actual de coisas, deve tomar-se rapidamente algum tipo de medidas.

 

Lisboa, 11 de Março de 2025


* Professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vice-Presidente do IDC – Associação para o Estudo do Direito do Consumo. Não sendo comum fazê-lo, neste escrito impõe-se que consignemos, expressa e antecipadamente, que as opiniões aqui veiculadas o são a título académico e pessoal.

Abreviaturas mais usadas: BCE = Banco Central Europeu; BdP = Banco de Portugal; CC = Código Civil; CPC = Código do Processo Civil; DCFR = Draft Common Frame of Reference; EBF = Estatuto dos Benefícios Fiscais; LCCG = Lei das Cláusulas Contratuais Gerais; LGT = Lei Geral Tributária; PECL = Principles of European Contract Law; RJCOE = Regime Jurídico das Contra-Ordenações Económicas; RJCS = Regime Jurídico do Contrato de Seguro; RJFP = Regime Jurídico dos Fundos de Pensões; TFUE = Tratado de Funcionamento da União Europeia; UE = União Europeia.

[1] Escrevemos «físico», para o diferenciar do electrónico, apenas por facilidade de expressão. Em rigor é errado opor pagamentos físicos a electrónicos, como se estes não fossem também físicos, pois a «electronicidade» do dinheiro não significa que ele não exista na natureza (physis); a internet, os meios de transmissão electrónica de mensagens, existem na natureza e tem sobre ele um impacto não negligenciável (cabos submarinos ou terrestres, satélites, ondas-rádio ou electromagnéticas, processadores, centros de dados, computadores pessoais que consomem todos eles energia, física portanto).

[2] Exceptuamos Mário Frota, Recusa da moeda com curso legal: norma imperfeita ou dotada de coercibilidade por mor de distinto enquadramento?, Revista Judiciária do Paraná 33 (2025), 196-205, id., Dinheiro em espécie versus dinheiro digital: a qual a primazia?, notícia com data de 19 Fev. 2025, disponível na versão em linha do Campeão das Províncias de 9 Mar. 2025 (campeaoprovincias.pt), id., Queres pão? Só com cartão. No mais tudo se veda: nem notas nem moeda, notícia com data de 21 Fev. 2024 disponível na versão em linha de Valor Local (valorlocal.pt), id., Com mil perdões: “Nem notas nem moedas, só cartões?!” Nem pouco mais ou menos!, notícia com data de 22 Abr. 2024 disponível na versão em linha do Observador (observador.pt), id., A moeda com curso legal e seu enquadramento normativo, notícia com data de 24 Jan. 2025 disponível na versão em linha da Gazeta Paços de Ferreira (gazetapacosdeferreira.pt).

[3] De que falaremos mais detidamente na secção 3.

[4] O facto é de constatação óbvia, mas vejam-se os resultados do relatório SPACE 2022 divulgado pelo BCE em ecb.europa.eu, de que realçamos os seguintes: os pagamentos em dinheiro físico em postos de venda na zona euro corresponderam a 59% das transacções em 2022 (aponta-se já para 52% em 2024, no relatório SPACE  2024), mas 72% em 2019 e 79% em 2016; igualmente, embora a diminuição do pagamento em dinheiro físico se verificasse já antes da pandemia, um questionário realizado demonstra que 54% declararam não ter mudado hábitos de pagamento devido à covid-19, 31% declararam usar menos dinheiro físico do que antes da pandemia e apenas 14% declararam usar mais dinheiro físico. Cf. também, por ex., a afirmação feita no sítio electrónico da CGD, página intitulada Sabe o que pode ou não pagar em numerário?, em cgd.pt: «A pandemia de covid-19, e as medidas de controlo que se seguiram, ajudaram também a intensificar a utilização dos meios de pagamento electrónicos, nomeadamente daqueles que recorrem à tecnologia contactless».

[5] Vd., ex multis, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, II, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, Francisco Rodrigues Rocha, Do giro bancário: reflexões à luz do novo regime dos serviços de pagamento, Cadernos O Direito 9 (2014), 104 ss., max. 104-114 (99-177), Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário. Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra Ed., Coimbra, 2015, 50 ss., Francisco Mendes Correia, Moeda bancária e cumprimento. O cumprimento das obrigações pecuniárias através de serviços de pagamento, Almedina, Coimbra, 2017, passim, id., Lições de Direito bancário, Almedina, Coimbra, 2024, José Engrácia Antunes, A moeda. Estudo jurídico e económico, Almedina, Coimbra, 2021, 310 ss. e passim, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito bancário, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, 32 ss., António Menezes Cordeiro/A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito bancário, I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, 478 ss., Hugo Ramos Alves, Dação em cumprimento, Almedina, Coimbra, 2017, ou Paulo Duarte, Um depósito bancário não é um (contrato de) depósito: ou a desadequação da linguagem dos contratos reais à realidade do dinheiro bancário no actual sistema monetário, EDC 10 (2016), 392 ss. (351-443).

[6] E. o.: DSP I, depois DSP II; directivas PBCFT; etc.

[7] Cf. também L. M. Pestana de Vasconcelos, Direito bancário cit., 35. A 2.ª prt. do considerando (19) do Regulamento (CE) n.º 974/98, de 3 de Maio, alude a «limitações aos pagamentos em notas e moedas, estabelecidas pelos Estados-membros por razões de interesse público (…)».

[8] M. Brito Bastos, O mútuo bancário cit., 59.

[9] J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 313 ss., distingue, a este respeito, entre «limites universais» (proibições gerais de pagamento em dinheiro físico), «limites legais, genéricos e específicos» (os primeiros aplicáveis indistintamente a notas e moedas; os segundos apenas a moedas), «limites convencionais» e «limites jurídicos ou sistemáticos» ao curso legal da moeda física.

[10] Não manifestamos qualquer preferência pelo termo numerário (que, aliás, é primeiramente um adjectivo; nummus, sim, enquanto substantivo, é moeda, de cujo radical curiosamente partilha numerus), mas utilizá-lo-emos de forma fungível, neste escrito, com dinheiro físico, moeda corrente, dinheiro a contado, dinheiro em espécie ou expressão equivalente (em parte, por ex., a de dinheiro líquido: cf. a definição do artigo 2.º/1 a) do Regulamento (UE) n.º 2018/1672, de 23 de Outubro, relativo ao controlo do dinheiro que entra ou sai da UE; e já antes o Regulamento (CE) n.º 1889/2005), ainda que reconhecendo a cada um, conforme e noutros contextos, âmbitos semânticos, incluindo normativos, próprios.

[11] L. M. Pestana de Vasconcelos, Direito bancário cit., 35: «agora vai-se muito mais longe e impõe-se mesmo o pagamento em moeda escritural que ne[sse] âmbito, muito largo, substitui a pró[p]ria moeda legal. Trata-se de um desenvolvimento recente (…)».

[12] Respectivamente, com o seguinte teor: «As prestações tributárias são pagas em moeda corrente ou por cheque, débito em conta, transferência conta a conta e vale postal ou por outros meios utilizados pelos serviços dos correios ou pelas instituições de crédito que a lei expressamente autorize»; «O prémio de seguro só pode ser pago em numerário, por cheque bancário, transferência bancária ou vale postal, cartão de crédito ou de débito ou outro meio electrónico de pagamento»; e «A subscrição das unidades de participação de fundos de pensões abertos é obrigatoriamente efectuada em numerário, por cheque bancário, transferência bancária ou vale postal, cartão de crédito ou de débito ou outro meio de pagamento electrónico».

[13] Sobre a distinção entre curso legal e poder liberatório, F. Mendes Correia, Moeda bancária cit., 130-136, ou J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 311 nt. 678 e 312 ss.

[14] Não tratamos aqui ex professo do argumento, não despiciendo, retirado da eficácia liberatória do euro durante o período de transição, entre 1 de Janeiro de 1999 e31 de Dezembro de 2001, em que existiu somente sob forma escritural. O argumento foi avançado por C. Ferreira de Almeida, Contratos cit., II, 71, e sucessivamente retomado pelos autores que retomaram o tema.

[15] O tema é já um «clássico» do direito bancário, hoje com menor importância, dada a amplitude com os pagamentos com meios electrónicos vêm sendo admitidos: cf., e. o., Catarina Gentil Anastácio, A transferência bancária, Almedina, Coimbra, 2004, 247 ss. e passim. Como nota J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 316, o regime de contratação poderá fazer presumir que o cumprimento não será realizado em moedas e notas, como sucede na contratação a distância (em que o empresário deve mesmo informar sobre os meios de pagamento aceitos: artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro), ou nos contratos electrónicos ditos «B2C puros», em que as obrigações das partes são integralmente formadas e cumpridas por meios electrónicos (artigo 29.º/2 do Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro).

[16] Regime que seria, em princípio, extensível aos pagamentos à segurança social ex vi artigo 3.º/1 a) do CRCSPSS, segundo observa L. M. Pestana de Vasconcelos, Direito bancário cit., 32 ss. Contudo, existe regulamentação específica. Assim, o artigo 76.º do Decreto Regulamentar n.º 6/2018, de 2 de Julho, cujo n.º 3 remete para despacho «os limites máximos de pagamento em numerário de valores devidos à Segurança Social». Isso mesmo encontra-se definido no Despacho n.º 15283/2013, de 11 de Novembro, cujo número 1.º determinou que «[o] pagamento dos valores devidos à Segurança Social, no caso de pagamento voluntário e ou pagamento de documentos previamente emitidos, pode ser efectuado nas Tesourarias do Sistema de Segurança Social (…) [a]té 150 Euros, se efectuado em numerário». Cf. também o Guia prático. Pagamento de contribuições à Segurança Social, Instituto da Segurança Social, I.P., disponível em seg-social.pt, 2025 (v5.39).

[17] Em todo o caso, o elenco de meios de pagamento da norma constante é exemplificativo. Pela forma como se encontra redigida a norma, pelo artigo em que se insere, parece ter sido propósito do legislador impedir, também nestes casos, pagamentos como «numerário» ou «moeda corrente», ainda que também estes permitissem a identificação do destinatário, não pelo meio de pagamento em si, mas através de recibo ou quitação. Sobre o conceito de moeda corrente e diferenciação face às moedas correntes comemorativas e de colecção, F. Mendes Correia, Moeda bancária cit., 117.

[18] Aqui o advérbio exclusivamente não significa que só possam existir pagamentos através da tal ou tais contas, mas que as contas só servem para pagamentos e movimentação de dinheiro relacionados com a actividade empresarial desenvolvida. Pretende-se, assim, em boa medida, evitar a confusão de patrimónios entre sócios ou gerentes e pessoas colectivas, mas também promover uma segregação, ainda que artificial, de património nos comerciantes pessoas singulares. O desiderato principal é, todavia, o controlo fiscal.

[19] A interpretação do preceito coloca problemas similares aos do artigo 63.º-E/2 da LGT. O conceito de donativo consta do artigo 61.º do EBF: «entregas em dinheiro ou em espécie, concedidos, sem contrapartidas que configurem obrigações de carácter pecuniário ou comercial, às entidades públicas ou privadas, (…) cuja actividade consista predominantemente na realização de iniciativas nas áreas social, cultural, ambiental, desportiva ou educacional».

[20] Cf. também a Recomendação da Comissão n.º 2010/191/UE, de 22 de Março.

[21] Vd. também a 2.ª prt. do considerando (19) do Regulamento (CE) n.º 974/98, de 3 de Maio: «as limitações aos pagamentos em notas e moedas (…) não são incompatíveis com o curso legal das notas e moedas expressas em euros desde que existam outros meios legais de pagamento das obrigações pecuniárias».

[22] Assim, conforme exemplifica J. Engrácia Antunes, A moeda it., 92-93: não podendo ser-se obrigado a receber mais do que 50 moedas num único pagamento, um credor de € 500 apenas está onerado em receber, em moedas, um máximo de € 100 (caso utilize moedas de € 2), € 50 (caso utilize moedas de € 1) ou mesmo, no limite, apenas 50 cêntimos (caso utilize moedas de 1 cêntimo).

[23] Cf. o nosso Do giro bancário cit., 109 (embora pensemos hoje de forma menos categórica).

[24] As vantagens do numerário estão bem sintetizadas pelo BCE na página electrónica O papel do numerário em ecb.europa.eu, mas também no «Decálogo do Dinheiro em Espécie» elaborado pela Denária Espanha, reproduzido por M. Frota, Dinheiro em espécie cit. Considerámo-los na exposição em texto corrido.

[25] Desta perspectiva, comparado com o pagamento escritural, pode dizer-se que acaba por ser «o único meio de pagamento gratuito» (M. Frota, Dinheiro em espécie cit.).

[26] Como a que aconteceu em início de 2025 no sistema de pagamentos Target 2, impedindo os próprios bancos de proceder a compensações e acertarem transacções entre si. Cf. a notícia de 10 de Março de 2025 da Reuteurs, EU lawmakers voice doubts about digital euro after ECB outage, em reuters.com.

[27] Cf. C. Ferreira de Almeida, Presságios sobre o direito do consumo, nos Estudos de Direito do Consumo. Homenagem a Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, DECO, 2016, 125 ss.; ou ainda António Menezes Cordeiro, Vulnerabilidades e Direito civil, RFDUL LXII (2021) 1/1, 21 ss., e os vários estudos reunidos no citado volume da RFDUL; também, com uma perspectiva crítica, em torno do direito alemão e da UE, Thomas Pfeiffer, Verbraucherrecht in Deutschland – Grundfragen und Perspektiven, nos Estudos de Direito do Consumo, I, coord. Rui de Mascarenhas Ataíde/Francisco Rodrigues Rocha/Vítor Palmela Fidalgo, Almedina, Coimbra, 2023, 51 ss. (tradução portuguesa: 71 ss.).

[28] M. Frota, Dinheiro em espécie cit.: «O uso e o acesso ao dinheiro em espécie é um serviço essencial que se deve garantir da mesma forma que se garantem os serviços públicos como os correios, as comunicações electrónicas, a energia eléctrica, a água, a saúde, a farmácia».

[29] Dados baseados no Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), consultados a partir do documento da Pordata, disponível em pordata.pt, intitulado Pordata retrata a evolução da pobreza em Portugal, 2. Em Portugal, em 2021, existiam quase 7.000 desempregados com prestações de desemprego iguais ou inferiores a € 250 mensais e 254.000 pessoas com prestações entre € 251 e € 500 por mês, portanto abaixo do limiar de pobreza (€ 551), correspondentes a 62% dos beneficiários de prestações de desemprego do ISS: dados constantes do documento do Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza, intitulado Pobreza e exclusão social em Portugal. Relatório 2023, EAPN, Porto, 2023, 26.

[30] M. Frota, Dinheiro em espécie cit. Vd. infra o que escrevemos a respeito da imposição de pagamento em numerário no jogo e aposta.

[31] Assim, The Environmental Impact of Digital over Cash Payments in Europe. White Paper Report for the European Digital Payments Industry Alliance, The European Digital Payments Industry Alliance, Abr. 2024, disponível em edpia.eu. Este maior impacto está também atestado, talvez mais isentamente, mas em todo o caso apenas para notas (sendo que o impacto de moedas, atenta a sua muito maior durabilidade, pode ser mais reduzido), no documento do BCE Product Environmental Footprint study of euro banknotes as a payment instrument, Dez. 2023, BCE, disponível em ecb.europa.eu. De forma aparentemente diversa, M. Frota, Dinheiro em espécie cit. Haverá ainda que considerar a energia de que carecem os processadores de computadores, ela própria fonte de calor e que precisa de ser alimentada com fontes combustíveis (as moedas e mesmo as notas, uma vez gerada a poluição em momento inicial, não carecem deste tipo de combustível para existir).

[32] Uma consulta pública pelo BCE foi lançada entre 12 de Outubro de 2020 e 12 de Janeiro de 2021; os resultados divulgados em Abril de 2021. Entretanto, depois de passos vários pelo BCE, a Comissão apresentou a Proposta de Regulamento COM(2023) 369 final (2023/0212(COD)), para implementação do euro digital, com data de 28 de Junho de 2023. A iniciativa encontra-se pendente.

[33] Cf. do Banco de Portugal o documento Avaliação da cobertura da rede de caixas automáticos e balcões de instituições de crédito, 2020, e, mais recente e com dados mais alarmantes, o documento homónimo reportado a 2022 (onde se preconiza que 30 freguesias possam ser afectadas no caso de uma «eventual contracção da rede»), ambos disponíveis em bportugal.pt.

[34] Ou caixas automáticos; também vulgarmente ditas caixas multibanco ou apenas multibanco, noutras latitudes multicaixas, ou também ATM.

[35] Mas, como refere M. Frota, Dinheiro em espécie cit., «[o] dinheiro em espécie não é a causa da fraude ou da economia subterrânea, pois a fraude pode ser cometida com todos os meios de pagamento e de várias maneiras (empresas de fachada, transferência de lucros para outras jurisdições, empresas de “trilha” de IVA, etc.)».

[36] Cf. também, por ex., o artigo 11.º/4 da Portaria n.º 227-A/2019, de 19 de Julho (Regulamento da Lotaria Nacional). Isto sem embargo de, em matéria de pagamento dos (eventuais) prémios pela entidade, em momento sucessivo, o legislador parecer manifestar certa preferência por pagamentos por via electrónica de que se mantenha registo.

[37] Existem «cartões de jogador», «recarregáveis», associados a contas bancárias, que, todavia, o têm de ser à ordem: cf., por ex., o artigo 17.º/1 da Portaria n.º 227-A/2019, de 19 de Julho.

[38] Os empréstimos das entidades exploradoras de jogos e apostas a jogadores são, todavia, trate-se de jogo físico ou em linha, proibidos: artigos 60.º/1 do Decreto-Lei n.º 422/89 e 42.º/3 do Decreto-Lei n.º 66/2015.

[39] Já para não falar daquilo a que C. Ferreira de Almeida, Hipocrisia no Direito, nos Estudos em homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, coord. Armindo Ribeiro Mendes et al., Gestlegal, Coimbra, 2022, 37 ss., chama de hipocrisia no direito, referindo-se também especificamente à disciplina jurídica do jogo e aposta.

[40] J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322 nt. 711, considera que o carácter obrigatório do pagamento em moeda bancária pode ser «meramente alternativo, e não exclusivo, nas transacções de pequeno valor», invocando o disposto no artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de Março. Parece com isto dizer que para tais montantes o pagamento com moedas e notas não pode impor-se em termos exclusivos, mas alternativos, com o pagamento em moeda escritural; ideia que nos parece afastada pelo que o próprio seguidamente escreve em texto corrido (ibid., 322-323). Cremos que o artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º 70/2007 tem um alcance menos amplo do que poderia parecer: ele efectivamente dispõe que o comerciante aceite «todos os meios de pagamento habitualmente disponíveis, não podendo efectuar qualquer variação no preço aplicado ao produto em função do meio de pagamento utilizado»; mas, por um lado, por «habitualmente disponíveis» não é claro não possa interpretar-se como aqueles que ele próprio tenha disponíveis (se não tiver terminal de pagamento, dificilmente poderá aceitar pagamento com cartões), ou mesmo os que sejam habitualmente disponíveis em determinado sector, e não os que sejam habitualmente disponíveis em todo o comércio jurídico; por outro, o diploma em causa tem um âmbito bastante circunscrito: «práticas comerciais com redução de preço, com vista ao escoamento das existências, ao aumento do volume de vendas ou a promover o lançamento de um produto não comercializado anteriormente pelo agente económico». Isto não significa que não tenhamos reservas, já com exclusivamente com base neste preceito, em considerar possível um comerciante ter dois preços: um para pagamentos com dinheiro a contado (mais baixos), outro para pagamentos electrónicos (mais altos). Acabando o comerciante por incorrer em custos acrescidos com este tipo de pagamentos dir-se-ia que sim (o que é proibido é sim, por ora, impor sobretaxas ou encargos ao pagamento com moedas e notas, como consta do ponto 4 da Recomendação da Comissão n.º 2010/191/UE), mas o ponto é discutível; de resto, com a previsível aprovação, num futuro muito próximo, do Regulamento do Euro Digital (proposto em 2023), o artigo 7.º/4, 2.ª prt. (ou o que, na versão final, lhe suceder), determinará a proibição de cobrança de encargos pela utilização de pagamentos em euro digital.

[41] Tal como simetricamente também pode impor-se, ex fide bona (artigo 762.º/2 do CC), o pagamento por transferência bancária estando em causa montantes elevados ou que envolvam onerosas deslocações; ou em casos em que o credor não disponha de troco (cf. também a Recomendação da Comissão n.º 2010/191/EU, de 22 de Março, pontos 2 e 3). Não pode inclusive em tais casos deixar de considerar-se a possibilidade da existência de usos interpretativos das declarações negociais (artigo 236.º/1 do CC) ou, mesmo, de costumes (não obstante a normal dificuldade em prová-los). Cf. sobre o tema, por ex., F. Rodrigues Rocha, Do giro bancário cit., 114 nt. 50, M. Brito Bastos, O mútuo bancário cit., 50-63, ou J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322 nt. 711.

[42] Vd., por ex., F. Rodrigues Rocha, Do giro bancário cit., 114 nt. 50, M. Brito Bastos, O mútuo bancário cit. 60 nt. 82 (que considera também a hipótese de «aquisição de um bem a um pequeno comerciante ou prestador de serviços»), ou J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322 nt. 711. O que sejam montantes baixos pode discutir-se. Até € 50 parece existir preferência dos particulares por pagamentos em dinheiro, conforme aponta o relatório SPACE 2022. Seja como for, obviamente não pode prescindir-se de uma apreciação caso a caso.

[43] Também J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322-323.

[44] Para os serviços mínimos bancários: Decreto-Lei n.º 255/2012, de 17 de Outubro. Sobre um possível direito à conta: M. Januário da Costa Gomes, Contratos comerciais, Almedina, Coimbra, 2012, 148-150. A respeito da existência de pessoas sem conta: J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322-323 nt. 713: «Apesar de a esmagadora maioria dos cidadãos (…) ser hoje titular de uma conta bancária ou de pagamento (…), existe naturalmente um sector residual de pessoas vulneráveis para quem o pagamento em numerário constitui a única forma de moeda acessível e, consequentemente, de cumprimento das respectivas dívidas pecuniárias». Em Portugal, segundo dados do Banco de Portugal, existiam, em 2023, 20.334.000 de contas de depósito à ordem, sendo que, se bem interpretamos, mais de uma conta pode ser de apenas uma pessoa e estarão aqui integradas também contas de pessoas colectivas.

[45] Em razão de tudo o exposto, como já nos pronunciámos em Do giro bancário cit., 113-114, tínhamos e continuamos a ter dificuldade em aceitar que ao dinheiro escritural seja generalizadamente reconhecido «curso legal», como defende M. Brito Bastos, O mútuo bancário cit., 50 ss., max. 61 (entendimento similar, mas menos peremptório, apenas «como princípio geral», parece ter J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322), que, para o efeito, considera insuficiente, e.o., o critério que atende às características da relação fáctica entre credor e devedor; e, por isso, configura as hipóteses em que o pagamento com dinheiro escritural tem maiores custos para o credor que vantagens como passíveis de abuso do direito (artigo 334.º do CC), segundo um juízo de ponderação e a avaliar casuisticamente. A posição do autor é, todavia, aquela que valerá, uma vez aprovado o Regulamento do Euro Digital (proposto em 2023, mas pendente), que prevê curso legal forçado generalizado para o euro digital (artigo 7.º/1 a 5), mas com excepções (artigo 9.º).

[46] Cf., porém, o Decreto-Lei n.º 3/2010,d e 5 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 53/2020, de 26 de Agosto, Lei n.º 24/2023, de 29 de Maio, ou pelo Decreto-Lei n.º 72/2024, de 16 de Outubro, o qual levanta, todavia, um conjunto de questões, sobre as quais nesta ocasião nos não deteremos.

[47] Assim, J. Engrácia Antunes, A moeda cit., 322-323.

[48] Cf. também os pontos 2 e 3 da Recomendação n.º 2010/191/UE.

[49] Sobre o que entender neste contexto o «estar obrigado a aceitar» vd. F. Mendes Correia, Moeda bancária cit., 117 ss.

[50] M. Frota, Recusa da moeda com curso legal cit., 199 ss. Temos mais dúvidas em integrar claramente a imposição de dinheiro electrónico no artigo 21.º a) da LCCG e, por esta via, no regime sancionatório artigo 31.º-A (cf., por ex., Ana Prata, Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, 515 ss.); temos também dúvidas em que caibam facilmente na previsão geral de cláusulas abusivas, contrárias à boa fé (artigos 15.º e 16.º ibid.). Se, com efeito, parecem traduzir, nos casos conhecidos, também cláusulas contratuais gerais, em função da amplitude que o artigo 2.º da LCCG dá ao respectivo regime (M. Frota, Recusa da moeda com curso legal cit., 202-203), não é, todavia, fácil integrá-las numa específica previsão dos artigos 17.º ss. e 21.º s., nem na previsão genérica dos artigos 15.º e 16.º do mesmo diploma.

[51] Assim, na página do BCE intitulada Perguntas frequentes sobre o numerário, em ecb.europa.eu, à pergunta «Com o aumento dos pagamentos electrónicos, o numerário passará a ser obsoleto?» responde-se: «Não. As características únicas do numerário garantem que este permanecerá relevante no futuro. Os meios de pagamento digitais poderão ser convenientes para muitas pessoas, mas não para todas. Os pagamentos electrónicos não substituirão o numerário como instrumento de pagamento, sendo antes utilizados em paralelo» (sublinhados nossos).

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