quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O FINANCIAMENTO DAS ACÇÕES COLECTIVAS E OS FUNDOS-ABUTRES

 


(edição de 27 de Setembro de 2023)


O FINANCIAMENTO DAS ACÇÕES COLECTIVAS

E OS FUNDOS-ABUTRES

Mário Frota

Antigo professor da Universidade de Paris d’ Est

Fundador e primeiro presidente da AIDC/IACL – Associação Internacional de Direito do Consumo

Fundador e presidente emérito da apDC – Direito do Consumo, Portugal

Fundador e primeiro director do CEDC – Centro de Estudos de Direito do Consumo - Coimbra

 

1.    A Directiva de 2020 da Acção Colectiva Europeia e seu escopo

A Directiva que ora rege no domínio da Acção Colectiva Europeia (1) dispõe cautelarmente de medidas susceptíveis de evitar que as acções constituam um meio de locupletamento injusto para os denominados fundos-abutres que as financiam de molde a avantajarem-se com parte significativa do quantum indemnizatório nelas arbitrado em detrimento dos consumidores efectivamente lesados (2).

A causa próxima de um redesenho da acção colectiva, outrora circunscrita à vertente inibitória – e tão só -, é a da proliferação de casos como os do Dieselgate (Volkswagen e outras marcas de nomeada), dos voos da Ryanair denegados e de situações análogas com foros de escândalo no espaço da União Europeia.

A directiva que, entretanto, veio a lume aparelha um sem-número de regras tendentes à consecução de um tal desideratum, a saber, o de prover à reparação de consideráveis prejuízos causados na esfera própria dos consumidores europeus. (3)

No seu preâmbulo se estabelece percucientemente que as entidades dotadas de “legitimatio ad causam” devem primar pela transparência no que tange às fontes de financiamento e, em particular, as das acções ressarcitórias que intentem de modo directo e imediato patrocinar.

Tal exigência é indispensável para que a judicatura avalie se o financiamento por entidades privadas, na medida em que o direito nacional o permita, cumpre as condições para o efeito estabelecidas:

·         se se verificam eventuais conflitos de interesses entre tais entidades e os legitimados processuais, a fim de se evitar o risco de litigância de má-fé e,

·         para além de se excogitar se o financiamento por terceiro com interesse económico na acção colectiva reparatória ou no seu resultado não desvirtua o escopo de um tal módulo processual no quadro da protecção dos interesses colectivos dos consumidores a que indissociavelmente se atém.

As informações veiculadas aos órgãos de judicatura por quem se ache dotado de legitimidade processual activa devem permitir se avalie em que medida o terceiro financiador poderia influenciar decisões de índole processual ou extra-processual por si adoptadas, em que se inclui naturalmente o teor das transacções a que se chegue, susceptíveis de prejudicar o interesse colectivo dos consumidores em presença. E permitam ainda perquirir em que medida o terceiro financiador o faz contra demandado seu concorrente ou do qual eventualmente dependa.

Importará considerar que o financiamento directo por entidade privada de uma dada acção colectiva contra demandado que opere no mesmo  segmento de mercado implicará um conflito de interesses, na medida em que o concorrente pode ter interesse económico no resultado da acção distinto do dos consumidores nela abrangidos.

No preâmbulo ainda se adverte para o facto de o financiamento indirecto da acção colectiva por instituições financiadas através de contribuições idênticas dos seus membros ou de donativos, em que se incluem os gerados no quadro de  iniciativas de responsabilidade social das empresas ou de financiamento colaborativo, dever ser considerado elegível, a título de  financiamento por entidades terceiras.

Ponto é que tal financiamento cumpra os requisitos no que tange à transparência, independência e ausência de conflitos de interesse.

Se os conflitos de interesses se confirmarem, as autoridades judiciárias devem poder tomar medidas adequadas, a saber, exigir aos investidos em legitimidade processual que recusem ou alterem o financiamento em causa.

 Se necessário, as autoridades judiciárias rejeitam a legitimidade do demandante ou indeferem liminarmente uma determinada acção colectiva ressarcitória.

Tal rejeição ou indeferimento, como se adverte noutro passo, não deverá afectar os direitos dos consumidores abrangidos pela acção colectiva.

2.    Evitar conflitos de interesses, não prostituir os precípuos fins da acção

A Directiva de que se trata prevê, no n.º 1 do seu artigo 10.º, sob a epígrafe “financiamento de acções colectivas para medidas de reparação” que

“Os Estados-Membros asseguram que, caso uma acção colectiva para medidas de reparação seja financiada por um terceiro, na medida em que o direito nacional o permita, se evitem conflitos de interesses e que o financiamento por terceiros que tenham um interesse económico na proposição ou no resultado da acção colectiva para medidas de reparação não [a] desvie da protecção dos interesses colectivos dos consumidores.”

E, no passo subsequente, oferece em pormenor a provisão que segue:

Os Estados-Membros asseguram, em particular, que:

·         As decisões tomadas pelos legitimados processuais no contexto de uma acção colectiva, incluindo os acordos indemnizatórios, não sejam indevidamente influenciadas por um qualquer terceiro, de tal forma que prejudique os interesses colectivos dos consumidores nela abrangidos;

 

·         A acção colectiva não seja intentada contra um demandado, concorrente do financiador, ou de quem o financiador dependa.

 

4.    Poderes outorgados aos órgãos de judicatura

A Directiva estatui ainda que aos Estados-Membros incumbe prover a que aos tribunais se outorguem poderes para avaliar, em extensão e profundidade, o cumprimento do que nos passos precedentes se dispõe.

E, para tanto, os que se reclamem de uma qualquer “legitimatio ad causam” (4) apresentarão, de modo circunstanciado, aos órgãos de judicatura uma síntese financeira dos fundos à sua disposição em que se enumere as fontes de financiamento de que se socorrem  em apoio da acção colectiva de que em concreto se cura.

Os Estados-Membros conferirão ainda a tais órgãos poderes em vista da adopção de medidas adequadas tendentes a exigir dos dotados de legitimidade processual activa que recusem ou procedam a alterações ao financiamento em causa.

Ao julgador se conferirá também poderes em ordem à rejeição, se for caso disso, ou ao não reconhecimento da legitimidade processual ao demandante in casu, em determinada acção colectiva por tal modo conspurcada.

Se tal ocorrer, ou seja, se for recusada a legitimidade processual activa em uma dada acção colectiva a um concreto demandante, tal rejeição não afectará os direitos dos consumidores nela abrangidos.

5.    As transacções: os acordos ressarcitórios

Por transacção se entende, de harmonia com os conceitos ínsitos nos códigos civis,  o contrato pelo qual os pleiteantes previnem ou terminam litígios mediante recíprocas concessões.

Em geral, os códigos de processo conferem, na circunstância, aos julgadores poderes meramente documentais, dir-se-ia, notariais mediante os quais lhes não cabe indagar das razões de fundo da transacção ou acordo e sua justeza, antes lhes cabe aferir só e tão só da legitimidade do objecto e da qualidade dos pleiteantes seus partícipes.

Com efeito, socorrendo-nos do que o Código de Processo Civil Português de 2013 prescreve, na esteira, de resto, dos de 1939 e 1966, eis como se estrutura o seu artigo 290 [epígrafe: “como se realiza a… transacção”]:

“1 - A… transacção pode fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo.

2 - O termo é tomado pela secretaria a simples pedido verbal dos interessados.

3 - Lavrado o termo ou junto o documento, examina-se se, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, … a transacção é válida, e, no caso afirmativo, assim é declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos.

…”

E tal é susceptível de se observar em homenagem à natureza do processo e do seu pendor dispositivo, em que prevalece o princípio da disponibilidade dos pleiteantes.

No que tange, porém, ao instituto ora em apreciação, o pendor é marcantemente inquisitório, dominado, pois, pelo principio da oficialidade ou da inquisitoriedade.

Eis o que prescreve a Directiva em epígrafe a tal propósito:

Os Estados-Membros proverão a que:

·         Demandante e demandado possam propor em conjunto ao tribunal um acordo quanto ao montante reparatório em favor dos consumidores; o

         O tribunal, em consequência de consulta formulada aos pleiteantes, a ambos convide a que cheguem a acordo no que tange aos valores da reparação dentro de prazo razoável.

 

A transacção, porém, sujeitar-se-á ao escrutínio do competente órgão de judicatura.

Tal órgão avaliará se deve rejeitar a homologação de uma transacção contrária a disposições imperativas do direito nacional, ou que inclua condições insusceptíveis de aplicação, tendo em conta os direitos e interesses dos partícipes envolvidos, e em especial os dos consumidores cuja tutela se ache em causa.

Aos Estados-membros se confere a faculdade de se estabelecerem regras que permitam aos tribunais recusar a homologação de um qualquer acordo com base na injustiça dos seus termos.

Se o tribunal se recusar a homologar a transacção que para o efeito lhe haja sido submetida, a acção colectiva em causa prosseguirá os seus termos.

As transacções homologadas são vinculativas para demandante, demandado e consumidores individuais abrangidos pela acção colectiva de que se trata.

Os Estados-membros podem estabelecer regras que confiram aos consumidores individuais abrangidos por uma acção colectiva e pelo acordo subsequente a possibilidade de aceitar ou recusar a sua vinculação pelos termos da transacção ou acordo firmado.

O quantum reparatório ou ressarcitório que resulte de um acordo homologado nos termos precedentemente enunciados não prejudica quaisquer outros meios de ressarcimento à disposição dos consumidores, nos termos tanto direito da União Europeia como dos ordenamentos jurídicos pátrios, que não tenham sido contemplados de modo expresso em um tal acto.

EM CONCLUSÃO

Cautelas peculiares se adoptam, pela vez primeira, para que o financiamento de acções colectivas (ressarcitórias) por terceiros de todo os não avantajem em detrimento das vítimas nem subvertam os precípuos fins que com a acção de massa instaurada se tende a almejar.

 

NOTAS

(1)   Directiva UE 2020/1828, de 25 de Novembro, do Parlamento Europeu e do Conselho, que os Estados-membros deveriam ter transposto para os seus ordenamentos internos até 25 de Dezembro próximo passado. Ocorre, porém, que em Portugal tal não aconteceu por mor de um legislador relapso e contumaz que negligencia as suas obrigações estatutárias face aos Tratados da União, incumprindo sistematicamente as obrigações decorrentes dos instrumentos de adesão ao Bloco Regional em que se integra.

 (2)   Para além das linhas preliminares ensaiadas na directiva de que se trata, realce para uma Resolução emanada Parlamento Europeu e consequente proposta de directiva que tende a ocupar-se exclusivamente do financiamento das acções na União Europeia em vista do incremento que tais operações vêm sofrendo na generalidade dos Estados-membros.

 A Resolução do Parlamento Europeu (a que vai apensa a enunciada proposta de directiva) remonta a 13 de Setembro de 2022.

E visa, como se define liminarmente, “estabelecer regras mínimas aplicáveis às entidades comerciais que financiam litígios de terceiros e às suas actividades autorizadas, prevendo um quadro para apoiar e proteger os demandantes financiados e os beneficiários previstos, incluindo, se for caso disso, aqueles cujos interesses são representados por entidades dotadas de legitimidade processual, em processos suportados total ou parcialmente pelo financiamento de litígios por terceiros. E estabelece salvaguardas para evitar conflitos de interesses, litigância abusiva, bem como a atribuição desproporcionada de prémios monetários aos financiadores de litígios, assegurando simultaneamente que o financiamento de litígios por terceiros permita aos demandantes e aos beneficiários previstos o acesso à justiça, garantindo a responsabilidade das empresas”.

(3)   Já em momento anterior, o Parlamento Europeu e o Conselho fizeram publicar a Directiva 2014/104/UE, de 26 de Novembro de 2014, atinente às acções de indemnização por infracção às disposições do direito da concorrência dos Estados-membros e da União Europeia.

 Na lei de transposição para o ordenamento jurídico pátrio – Lei n.º 23/2018, de 05 de Junho – se estatui, no domínio da protecção dos consumidores, o que segue (art.º 19, sob o apodo  “acção popular”):

 “1 - Podem ser intentadas acções de indemnização por infracção ao direito da concorrência ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, na sua redacção actual, sendo-lhes ainda aplicável o disposto nos números seguintes.

 2 - Têm legitimidade para intentar acções de indemnização por infracção ao direito da concorrência ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redacção actual, para além das entidades nela referidas:

 a) As associações e fundações que tenham por fim a defesa dos consumidores; e

b) As associações de empresas cujos associados sejam lesados pela infracção ao direito da concorrência em causa, ainda que os respectivos objectivos estatutários não incluam a defesa da concorrência.

 3 - A sentença condenatória determina os critérios de identificação dos lesados pela infracção ao direito da concorrência e de quantificação dos danos sofridos por cada lesado que seja individualmente identificado.

 4 - Caso não estejam individualmente identificados todos os lesados, o juiz fixa um montante global da indemnização, nos termos do n.º 2 do artigo 9.º

 5 - Quando se conclua que o montante global da indemnização fixado nos termos do n.º 3 não é suficiente para compensar os danos sofridos pelos lesados que foram entretanto individualmente identificados, o mesmo é distribuído pelos mesmos, proporcionalmente aos respectivos danos.

 6 - A sentença condenatória indica a entidade responsável pela recepção, gestão e pagamento das indemnizações devidas a lesados não individualmente identificados, podendo ser designados para o efeito, designadamente, o autor, um ou vários lesados identificados na acção.

 7 - As indemnizações que não sejam reclamadas pelos lesados num prazo razoável fixado pelo juiz da causa, ou parte delas, são afectas ao pagamento das custas, encargos, honorários e demais despesas incorridos pelo autor por força da acção.

8 - As indemnizações remanescentes que não sejam pagas em consequência de prescrição, ou de impossibilidade de identificação dos respectivos titulares revertem para o Ministério da Justiça, nos termos do n.º 5 do artigo 22.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, na sua redacção actual.”

 É com base no n.º 7 da disposição precedentemente transcrita que os Fundos-abutres se vêm avantajando com os remanescentes daí emergentes, já que em regra os lesados ou por insuficiência de prova ou por ignorância ou por qualquer razão mais ou menos plausível não reivindicam a sua quota-parte do bolo indemnizatório, dado o sistema instituído  que é o do opt-out (Lei da Acção Popular: n.º 1 do artigo 15).

 (4)   Ao invés do que ocorre em Portugal, em que se outorga  legitimatio ad causam aos cidadãos singularmente considerados e às associações e fundações que por escopo hajam os interesses imbricados na saúde pública, ambiente,  qualidade de vida, protecção dos consumidores, património cultural e domínio público, de harmonia com o que prescreve a Lei da Acção Popular – Lei 83/95, de 31 de Agosto -, a Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2020, impõe um vasto conjunto de requisitos, no seu artigo 4.º, a saber:

 

·         Tratar-se pessoa colectiva constituída nos termos do direito nacional do Estado-membro de designação

 ·         Ter exercido, ao menos, doze meses de actividade pública efectiva na protecção dos interesses dos consumidores antes da formulação do pedido  de designação;

 

·         Do objecto social transparecer que se move por interesse legítimo na protecção dos direitos do consumidor;

 

·         Tratar-se de uma instituição de escopo não egoístico (destituída de qualquer ânimo ou fim lucrativo;

 

·         Não estar sujeita a eventual processo de insolvência nem haver sido declarada insolvente;

 

·         Ser independente e insusceptível de influências exercidas por não consumidores, em especial por agentes económicos e outros, que revelem ter um interesse económico nas  acções colectivas, nomeadamente no caso de financiamento por terceiros, e, para esse efeito,

 

·         Revelar que estabeleceu procedimentos para obstar a uma tal influência, e bem assim para impedir conflitos de interesses entre a própria instituição, os seus financiadores e os interesses dos consumidores em presença;

 

·         Tornar disponíveis publicamente, em linguagem clara e inteligível, por qualquer meio adequado, em especial no seu sítio Web, informações que revelem  que a instituição cumpre os critérios precedentemente enunciados e informações acerca das fontes do seu financiamento em geral, a sua estrutura organizativa, de gestão e de participação, o seu objecto social e consequentes actividades.

 

Em Portugal, ao invés, a legitimatio ad causam de associações e fundações é aferida em razão dos requisitos plasmados no artigo 3.º da Lei da Acção Popular, a saber:

·         Personalidade jurídica;

 

·         O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a tutelados interesses em causa no tipo de acção de que se trate;

 

·         O não exercerem qualquer tipo de actividade económica concorrente com empresas ou titulares de profissões liberais.

 

BIBLIOGRAFIA

Mário Frota, “A acção colectiva europeia em vias de reformulação (“The redrafting of the european representative action”)”, Revista de Processo, ed. Revista dos Tribunais, Thomson Reuter, São Paulo, n.º 335, Janeiro de 2023.

Mário Frota (coordenador), Ângela Frota, Cristina Freitas, Teresa Madeira, “ Das Acções Colectivas em Portugal”, edição DGC, Dezembro de 2006, 208 págs.

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Reclamações sobre ginásios sobem 6% para 1.450 em 2024

  O Livro de Reclamações Eletrónico recebeu 1.450 reclamações referentes a ginásios no ano passado, mais 6% face a 2023, sobretudo relativ...