“Diz-se que há agora leis novas segundo as quais se o comerciante não devolver o dinheiro em 14 dias terá de o fazer em dobro (isto é, multiplicando-se por 2 o valor original).
Se eu puser termo, por causa de uma avaria, à compra de um carro usado, que custou 5 500€, e o vendedor não me restituir o dinheiro dentro de duas semanas, vai ter de me devolver 11 000€?”
Cumpre analisar a questão e oferecer a resposta adequada:
1. Há que distinguir: ou estamos perante a entrega de um bem em razão de um contrato de compra e venda de consumo ou perante a sua devolução em resultado de uma não conformidade no âmbito das garantias legais ou contratuais.
2. Tratando-se de um contrato de compra e venda de consumo, o fornecedor deve entregar os bens na data ou dentro do período especificado pelo consumidor, salvo acordo em contrário.
3. Se não se estabelecer uma data para a entrega do bem, o fornecedor fá-lo-á sem demora injustificada e até 30 dias após a celebração do contrato.
4. Se o fornecedor não cumprir, porém, a obrigação de entrega do bem na data acordada ou no prazo previsto, pode o consumidor conceder-lhe prazo adicional adequado às circunstâncias.
5. Se o fornecedor não entregar o bem no prazo adicional, tem o consumidor o direito de pôr termo ao contrato.
6. Ao consumidor se reconhece, porém, ainda o direito de pôr imediatamente termo ao contrato, sem necessidade de qualquer prazo suplementar ou adicional, se o fornecedor não entregar o bem na data acordada ou dentro do prazo estabelecido e se se verificar qualquer das hipóteses:
6.1.Se houver recusa na entrega do bem;
6.2.Se o prazo fixado para a entrega for essencial face a todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato; ou
6.3.Se consumidor der a saber, em momento prévio ao da celebração do contrato, que a entrega do bem dentro de um determinado prazo ou data é essencial.
7. Após se ter posto termo ao contrato, deve o fornecedor restituir na íntegra – e nos 14 dias subsequentes – o preço pago.
8. Se o não fizer, tem o consumidor o direito à devolução em dobro do montante pago.
9. O mesmo ocorre, nos termos da Lei dos Contratos à Distância e Fora de Estabelecimento de 2014, nos casos em que o consumidor usa do seu direito de retractação [o de dar o dito por não dito, no prazo de 14 ou 30 dias, consoante os casos] se o fornecedor deixar escapar os 14 dias iniciais sem proceder à devolução na íntegra do preço pago.
10. Tratando-se do exercício da garantia de bens de consumo, a solução é diversa:
10.1. O fornecedor deve efectuar o reembolso dos pagamentos através do mesmo meio de pagamento adoptado pelo consumidor na transacção inicial, salvo havendo acordo expresso em contrário e desde que o consumidor não incorra em quaisquer custos como consequência do reembolso.
10.2. No prazo de 14 dias a contar da data em que tiver sido informado da decisão de pôr termo ao contrato, o fornecedor reembolsará o consumidor de todos os pagamentos recebidos, em que se incluem os custos de entrega do bem.
10.3. Sem prejuízo, e salvo situações em que incumba ao fornecedor a recolha do bem, é-lhe lícito proceder à retenção do reembolso enquanto os bens não forem devolvidos ou o consumidor não fizer prova da sua remessa.
11. Nas hipóteses constantes do número precedente, a devolução não se fará em dobro, mas em singelo: se em 14 dias o fornecedor não restituir o preço pago, entrará em mora, e estará sujeito aos juros respectivos que acrescerão ao preço a restituir. O que é, a todas as luzes, distinto.
EM CONCLUSÃO
a. Só haverá restituição em dobro do preço pago caso haja incumprimento das regras da entrega nos contratos de compra e venda de consumo, que é em geral de 30 dias e a que acrescerá eventualmente um prazo adicional, a bel talante do consumidor, ou em prazo pré-estabelecido em caso de essencialidade do bem, segundo o contrato, e o preço pago não for restituído em 14 dias consecutivos [DL 84/2021: n.ºs 4 a 9 do art.º 11] .
b. E ainda em caso de devolução do bem no exercício do direito de retractação nos contratos à distância ou fora de estabelecimento, que é, consoante as hipóteses recortadas por lei, de 14 ou de 30 dias, respectivamente [neste último caso, nos contratos celebrados no domicílio ou no decurso de excursão organizada pelo promotor] [DL 24/2014: n.º 6 do art.º 12].
c. Tratando-se de restituição do preço nas hipóteses de devolução do bem em razão do exercício do direito de garantia por não conformidade com o contrato, não subsiste a regra da “restituição em dobro”, antes se processará tão só em singelo, acrescida dos juros de mora [DL 84/2021: n.º 10 do art.º 11].
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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