sexta-feira, 19 de novembro de 2021

“QUEM COMPRA RUIM PANO… COMPRA DUAS VEZES AO ANO!”


“Perante uma avaria grossa no veículo que adquiri há já três anos, denunciei-a, em devido tempo, com ano e cinco meses de uso, à marca (a um dos seus concessionários no Porto).

A avaria subsiste, volvidos todos estes meses: já lá voltou por três  vezes e dizem-me agora que o “aparente” defeito é uma característica do modelo em causa.

O facto é que me dizem que tendo sido já esgotado o prazo legal de garantia, já caducou o meu direito de exigir seja o que for.

O certo é que a viatura não me oferece qualquer segurança e o que pretendo é devolvê-la contra a restituição do valor pago.”

Apreciados os factos, cumpre pronunciar-nos acerca da possibilidade de o consumidor estar em tempo para pôr termo ao contrato, devolvendo o veículo e recebendo de volta o preço.

1.    Se nos socorrermos da jurisprudência (conjunto de decisões) do Supremo Tribunal de Justiça, depara-se-nos o acórdão de 05 de Maio de 2015, da lavra do Conselheiro João Camilo, segundo o qual

“I - Nos termos do DL n.º 67/2003, de 08 de Abril, os meios que o consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um objecto defeituoso, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha. Segundo o n.º 5 do art.º 4.º do referido diploma legal, essa escolha apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pela natureza abusiva da escolha nos termos gerais.

II - Tratando- se de compra e venda de um automóvel novo de gama média/alta que após várias substituições de embraiagem, de software e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução do contrato, sem incorrer em abuso de direito.”

2.    A garantia legal é de 2 anos: e a não conformidade da coisa foi denunciada, em tempo, pelo consumidor (LGBC – Lei das Garantias dos Bens de Consumo: n.º 1 do art.º 5.º ).

 3.    Como a não conformidade subsiste, a despeito de haver passado ano e meio sobre a denúncia primeira, importa dizer que não se acha esgotado o prazo para o exercício do direito e, consequentemente, eventual acção que o consumidor haja de propor não terá sido tocada pela caducidade do direito de acção, consoante o que dispõe  a LGBC (n.º 3 do art.º 5.º - A).

 4.    Com efeito, o mencionado artigo estabelece que:

 “Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia…”: a que acrescem os períodos de tempo em que o consumidor esteve privado do uso da coisa por virtude das reparações.

 5.    Logo, a acção é oportuna, já que a denúncia da não conformidade remonta, como se refere na consulta, há ano e meio, não estando, pois, esgotados os dois anos (+)  para a instauração da correspondente acção.

 6.    Situação diferente é a que se prende com a restituição do montante pago. O enunciado acórdão diz no n.º III do seu sumário:

 “Apurando-se que o veículo vendido, apesar dos defeitos não eliminados, continuou a circular sem limitações na respectiva capacidade de circulação e sem afectar a segurança dos passageiros, percorrendo, em três anos e meio, 59 mil quilómetros, a devolução do valor do veículo a efectuar pelo devedor, em consequência da resolução e como correspectivo da devolução do carro, deve limitar-se ao valor deste, na data do trânsito em julgado.”

 7.    Há, com efeito, decisões num sentido e noutro, conquanto – na esteira da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia – a Lei Nova das Garantias (que entra em vigor no 1.º de Janeiro de 2022) defina que “no prazo de 14 dias a contar da data em que for informado da decisão de resolução do contrato, o profissional deve reembolsar o consumidor de todos os pagamentos recebidos, incluindo os custos de entrega do bem.” (DL 84/2021: n.º 6 do art.º 20).

EM CONCLUSÃO:

a.    Efectuada a denúncia de não conformidade de uma coisa móvel, no lapso dos dois anos da garantia legal, a despeito das tentativas de reparação, a subsistir a aludida desconformidade, é lícito ao consumidor pôr termo ao contrato, devolvendo a coisa a fim de lhe ser restituído o preço, nos dois anos subsequentes à denúncia.

 b.    O preço, ao que parece, deve ser restituído na íntegra, sem deduções de qualquer natureza.

 

Mário Frota

Fundador da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Coimbra

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