VL
Faleceu, há dias, na flor
da idade, uma antiga colaboradora da apDC, sociedade portuguesa de Direito do
Consumo, Catarina de Albuquerque, de seu nome.
Catarina de Albuquerque
foi a primeira Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à
Água e ao Saneamento entre 2008 e 2014 e cumpriu um papel decisivo no
reconhecimento do direito à água potável e ao saneamento básico como Direito
Humano Universal, pela Assembleia Geral da ONU em 2010.
Como corolário de uma tal
consagração, jamais se deveria consentir a interrupção de fornecimento predial
de água (o ‘corte’) a quem quer. Como, aliás, o fazem determinados países, que
galgam a onda da civilização e do desenvolvimento. Não é assim, Professor?
MF
Assim
é, na verdade!
As
nossas homenagens a Catarina Albuquerque que se bateu valorosamente por uma
Causa que é, afinal, a Causa da Humanidade: a da água e do saneamento básico.
Cataria
Albuquerque era uma Mulher de Causas. Apreciámo-la muito quando se nos juntou,
na instituição, na apDC, em defesa intransigente dos consumidores.
VL
O
Professor traz na manga algo de interessante.
Nem
o Eça de Queirós, no seu tempo, escapou a um corte de água, decerto ilegal, à
luz da lei em vigor, ao tempo.
Quer
revelar-nos o texto?
MF
Eça
de Queiroz (1845-1900) foi, de certa feita, surpreendido em Portugal com um
inopinado “corte” de água.
Endereçou,
na circunstância, ao Director da ‘Companhia das Águas’ uma carta hilariante,
que circulava ao tempo.
Trazêmo-la
à contemplação dos que hoje se confrontam, quantas vezes, com situações
análogas, impotentes em fazer valer os seus direitos.
Eis
a missiva com o fino recorte de Eça:
«Exm.º
Senhor Pinto Coelho
-
Digno director da Companhia das Águas e
Digno
membro do Partido Legitimista –
Dois
factores igualmente importantes para mim, me levam a dirigir a V. Ex.ª estas
humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das
forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta
de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram
os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve
comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a
responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se
eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas, a justa comoção de V. Ex.ª,
que eu interponha o meu contador, Exm.º Senhor, que eu o interponha nas
relações de V. Ex.ª com o mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de
industrial e de político, caiam na minha banheira.
E
pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite,
dos nossos contratos. Em virtude de um escrito devidamente firmado por V. Ex.ª
e por mim, temos nós - um para com o outro - certo número de direitos e
encargos.
Eu
obriguei-me para com V. Ex.ª pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um
contador e o preço da água que consumisse.
V.
Ex.ª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu
consumo. V. Ex.ª fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste
contrato: eu, se não pagar; V. Ex.ª, se não fornecer.
Se
eu não pagar, V. Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não
fornecer, o que hei-de eu fazer com o Senhor?
É
evidente que, para que o nosso contrato não seja verdadeiramente leonino, eu
preciso, no caso análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a minha canalização,
de cortar alguma coisa a V. Ex.ª. Oh! e hei-de cortar-lha!...
Eu
não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não
peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia
em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos.
Quero
apenas esta pequena desafronta, bem simples e razoável, perante o direito e a
justiça distributiva; quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!
Rogo-lhe,
Exm.º Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente,
sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu
pleno direito, eu possa cortar a V. Ex.ª
Tenho
a honra de ser
De
V. Ex.ª,
Com
muita consideração e com umas tesouras…”
VL
Sendo a água e o saneamento
hoje direitos humanos, será por direitas contas antinatural o “corte”, a
suspensão.
Não será assim, Professor?
MF
A
generalidade dos ordenamentos jurídicos continua a permitir a “excepção de não
cumprimento do contrato: quem não cumpre, expõe-se a que lhe seja cortado o
fornecimento… enquanto não se propuser cumprir!.
Ou
seja, nessa óptica é lícito, à luz da lei em vigor, cortar o fornecimento a
quem não pague no tempo e no lugar próprios o preço, a prestação regular a que
está obrigado…
Em
Portugal, tal previsão consta do Código Civil (n.º 1 do artigo 428.º)
“Se
nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das
prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação
enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento
simultâneo.”
Mas,
no caso, é de direitos humanos que se trata.
Os
franceses, de forma modelar, decretaram, há anos, que o serviço de distribuição
predial de águas é insusceptível de corte, de suspensão.
Se
acaso houver incumprimento por mor do não pagamento das facturas regularmente
emitidas, a cobrança efectuar-se-á por outros meios que não os resultantes da
coacção exercida mediante a suspensão do regular fornecimento do produto ou do
serviço.
A
comunidade internacional reconheceu, com efeito, o direito à água e ao
saneamento como direito humano, há já 15 anos.
A
Assembleia-Geral das Nações Unidas, a 28 de Julho de 2010, adoptou uma
resolução na qual reconhece a água potável e o saneamento como um direito humano
essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos.
Instou,
na circunstância, os Estados e as organizações internacionais a assegurar os
recursos financeiros, formação e transferência de tecnologias necessários,
através de assistência e cooperação internacionais, com vista a melhorar o
acesso à água e ao saneamento aos povos de todas as latitudes.
O
Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a 30 de Setembro
de 2010,
•
reafirmou a decisão e
•
destacou que o direito à água e saneamento constitui componente inalienável do
direito a um nível de vida adequado, tal como o direito à habitação ou à
alimentação.
“O
Conselho colocou destarte O DIREITO À ÁGUA E SANEAMENTO em pé de igualdade com
um conjunto de outros direitos humanos outrora reconhecidos.”
Não
deveriam poder, pois, as entidades gestoras dos serviços de distribuição
predial de águas usar da “excepção de não cumprimento” para suspender o
fornecimento da água e o correlato saneamento, o serviço de efluentes. Exactamente
por se tratar de DIREITO HUMANO.
A
discussão sobre o pagamento de facturas por solver far-se-á sempre noutra sede
com os instrumentos de que dispõem os fornecedores para não se verem privados
dos valores que lhes naturalmente competem pelo fornecimento.
VL
Não se trata de advogar o
fornecimento gracioso, de graça, do precioso líquido a todos e a cada um. Nem de
encorajar ou estimular o incumprimento pelos consumidores, bem entendido, das
prestações a seu cargo como contrapartida pelo fornecimento da água!
MF
Evidentemente,
não se trata de advogar o incumprimento de banda dos consumidores, antes de
transferir a cobrança das facturas indébitas para meios outros que não esta
execução célere de quem tem, afinal, a faca e o queijo na mão, a tesoura pronta
a cortar onde não deve…
Para
além de medidas avulsas, adoptadas localmente, Portugal, ao invés, entre
outros, da Espanha e da França, não tem, ao que parece, uma política firme, em
particular no que tange à água.
Cada
uma das entidades gestoras age a seu bel talante.
Mesmo
no decurso da pandemia, Portugal teve, através das entidades gestoras,
comportamentos diferenciados e errantes.
Como
noutro ensejo o dissémos:
“Umas
reduziram o tarifário. Outras isentaram de pagamento durante um dado período.
Outras excluíram a tarifa fixa que é, em si mesma, ilegal por se tratar de um
consumo mínimo proibido.
Outras
ainda diferiram o pagamento das facturas de Fevereiro e, eventualmente, a de
Março… de 2021!
A
despeito das proibições de corte, sucessivamente decretadas (e se estenderam
até finais do ano de 2021, por mor de uma intervenção do Governo), empresas
gestoras houve que efectuaram “cortes” não só na água, mas em outros serviços
essenciais, em situação de aparente distracção que em circunstância alguma se
tolera ou escusa.
Muita
água correrá ainda por baixo das pontes até que países como os nossos, pouco
flexíveis nas suas políticas de “esquerdo, direito, um dois…”, levem às últimas
consequências a circunstância de a água e o saneamento serem hoje - e de forma
inalienável - direito humano.
Há
coisas que são elementares. Não podem cair em olvido. Porque se prendem com o
quotidiano de cada um e de todos. Mas desafortunadamente é o que acontece!
Teremos
de continuar a agitar as águas… para que se possa ter uma diferente
consideração para com os consumidores da água. Da água, direito humano!
Em
suma, há que tratar a Água e o Saneamento básico como direitos humanos que são.
Mas
a avidez das empresas, e a cegueira generalizada a que se assiste, não farão cair
daí abaixo tais procedimentos que são desumanos e brutais.
II
A VIOLÊNCIA DO CORTE
AGRAVADA POR IRREGULAR
Contra
a arraia, a água em Gaia sem qualquer baia, inda que não caia, baixa-se-lhe a saia…
VL
De um ouvinte de Gaia:
ÁGUA: uma factura de há quatro meses por pagar.
Facturas seguintes pagas no tempo e no lugar
próprios.
Uma “notificação” na última das facturas em letra
miúda: 10 dias úteis para pagar sob pena de interrupção. Coisa imperceptível.
Consumidor inadvertido, não se apercebeu da
“notificação”. Volvido esse tempo, o corte.
Tal procedimento é regular?
Se o não for, como actuar?
MF
1. O
Regulamento em vigor, emanado do Regulador, prescreve imperativamente (art.º
54), sob a epígrafe “interrupção do serviço de abastecimento de água por facto
imputável ao utilizador”:
“A [empresa ou serviço] pode (‘cortar’) o
abastecimento de água, por motivos imputáveis ao consumidor (e equiparado)”
quando:
§ Não for
titular do contrato e não mostrar que está habilitado a usar o serviço;
§ Não for
possível o acesso ao sistema para inspeção ou, determinadas as reparações, se
não efectuarem no prazo fixado, desde que haja perigo de contaminação, poluição
ou suspeita de fraude que o justifique;
§ Não
assegurar as condições necessárias para a substituição do contador;
§ Se
recusar a entrada no prédio para leitura, verificação, substituição ou
levantamento do contador;
§ Se
viciar o contador ou usar de fraude para acesso à água;
§ Se
modificar o sistema e alterar as condições de fornecimento;
§ Se
detectar ligações clandestinas ao sistema público;
§ Houver
mora no pagamento da factura de fornecimento;
…”
2. No entanto, o ‘corte’ não pode ser feito às cegas em
caso de não pagamento.
O tal
Regulamento exige (art.º 104):
§ Pré-aviso
escrito, por correio registado ou meio equivalente, com antecedência mínima de
20 dias da data do ‘corte’.
§ § Do
pré-aviso constarão:
o
Referência à(s) factura(s) em dívida, com as datas
nelas apostas, e seu valor;
o
Meios para que o consumidor evite o ‘corte, com
indicação exaustiva para o seu uso
o
E a retoma do fornecimento;
o
Valor da tarifa para a retoma.
§ Se
invocada fundadamente a prescrição da dívida ou a caducidade da diferença do
preço (que ocorre seis meses após a emissão da factura), não há lugar ao
‘corte’.
3. Se a empresa
ou serviço incumprir tais obrigações e, ainda assim, proceder ao ‘corte’, fica
em maus lençóis: terá não só de restabelecer a ligação, sem mais, como se
obriga a indemnizar o consumidor (e indemnizar significa ‘ficar sem dano’) de
todos os prejuízos materiais e morais que a situação lhe tiver acarretado.
4. Para
tanto, o consumidor terá de fazer contas ao milímetro e apresentar à empresa ou
serviço relapso o rol dos valores com que fora atingido pelos procedimentos
ilegais observados. Como, por exemplo,
o
o tempo de privação da água,
o
as despesas de substituição da água encanada em que
incorreu,
o
o tempo
despendido para resolução do problema
(tempo é dinheiro), ou seja, a privação do rendimento pelo tempo
despendido na resolução do problema, que não é caso de simples incómodos sem
relevância jurídica,
o
o vexame por que passou por o terem por incumpridor,
caloteiro (a honra tem preço, ainda que
incalculável) e
o
as mais despesas a que a situação o obrigou.
5. A acção
de indemnização será intentada ou nos tribunais de consumo (até 5 000 €)
ou nos julgados de paz (até 15 000 €), se os houver na malha geográfica do
lugar de residência (para os de consumo, em caso de inexistência, o nacional,
supletivamente competente em razão do território).
6. Abundam
os casos de incumprimento de todas estas regras pelo fornecedor. O que terá de
ter necessariamente consequências.
7. Em
geral, como no caso, omissão absoluta da exigência de correio registado (com
aviso de recepção para maior garantia)
8. Outras
vezes, cobrança da taxa de reactivação, como “multa civil”, sem ter havido
corte: o que é patentemente um crime de especulação passível de prisão e multa.
9. Os
serviços públicos essenciais estão ao serviço dos cidadãos. As empresas que o
prestam não podem usar do “seu poder” para, como “cão por vinha vindimada,”
ultrapassarem as regras a que se sujeitam ou ignorarem-nas pura e simplesmente,
como se lhes fosse lícito passar uma esponja sobre todo esse articulado porque
“acima da lei”!
III
TAXA DE DISPONIBILIDADE:
FIXA E VARIÁVEL
“Da minha factura
de água consta, com estranheza, uma taxa de disponibilidade. Com duas
variantes: fixa e variável. A variável é definida pelo consumo de água.
Sempre o ouvi dizer
que as pessoas têm de pagar só o que consomem na exacta medida do que e em que
consomem,
E que a uma taxa
tem de corresponder um serviço. E aqui não há serviço nenhum associado. Porque
já pago a água que consumo.
Em que ficamos?
Isto é legal? Isto é ilegal? É mais um embuste para que os serviços cobrem
mais? Sem base legal?”
MF
1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais de 26 de Julho de
1996 reza no seu artigo 8.º
Consumos
mínimos e contadores
1
- São proibidas a imposição e a cobrança de consumos mínimos.
2
- É proibida a cobrança aos comnsumidores e equiparados de:
a)
Qualquer importância a título de preço, aluguer, amortização ou inspecção
periódica de contadores ou outros instrumentos de medição dos serviços
utilizados;
b)
Qualquer outra taxa de efeito equivalente à utilização das medidas referidas na
alínea anterior, independentemente da designação utilizada;
c)
Qualquer taxa que não tenha uma correspondência directa com um encargo em que a
entidade prestadora do serviço efectivamente incorra, com excepção da
contribuição para o audiovisual;
d)
Qualquer outra taxa não subsumível às alíneas anteriores que seja contrapartida
de alteração das condições de prestação do serviço ou dos equipamentos
utilizados para esse fim, excepto quando expressamente solicitada pelo
consumidor.
2. Nos termos do n.º 3
do artigo enunciado,
“
Não constituem consumos mínimos, para efeitos do presente artigo, as taxas e
tarifas devidas pela construção, conservação e manutenção dos sistemas públicos
de água, de saneamento e resíduos sólidos, nos termos do regime legal
aplicável.”
3. Por conseguinte, o
que estão a cobrar, na sua factura de água, é redondamente ilegal.
4. Por isso, reclame
incessantemente no Livro de Reclamações.
5. Participe o facto à
Direcção-Geral do Consumidor e ao Ministério Público para que, se o entenderem,
proporem as acções colectivas cabíveis para a reposição da legalidade.
6. Não se ignore que
quer o Ministério Público quer a Direcção-Geral do Consumidor são titulares das
acções colectivas, como decorre da Lei-Quadro de Defesa do Consumidor:
Art.º
20
Incumbe
também ao Ministério Público a defesa dos consumidores no âmbito da presente
lei e no quadro das respetivas competências, intervindo em ações
administrativas e cíveis tendentes à tutela dos interesses individuais
homogéneos, bem como de interesses coletivos ou difusos dos consumidores.
Art.º
21
Direção-Geral do Consumidor
1 - A Direção-Geral do Consumidor é o
serviço público destinado a promover a política de salvaguarda dos direitos dos
consumidores, bem como a coordenar e executar as medidas tendentes à sua proteção,
informação e educação e de apoio às organizações de consumidores.
2 - Para a prossecução das suas
atribuições, a Direção-Geral é considerada autoridade pública e goza dos
seguintes poderes:
a) Solicitar e obter dos fornecedores de
bens e prestadores de serviços, bem como das entidades referidas no n.º 2 do
artigo 2.º, mediante pedido fundamentado, as informações, os elementos e as
diligências que entender necessários à salvaguarda dos direitos e interesses
dos consumidores;
b) Participar na definição do serviço
público de rádio e de televisão em matéria de informação e educação dos
consumidores;
c) Representar em juízo os direitos e
interesses coletivos e difusos dos consumidores;
d) Ordenar medidas cautelares de
cessação, suspensão ou interdição de fornecimentos de bens ou prestações de
serviços que, independentemente de prova de uma perda ou um prejuízo real, pelo
seu objeto, forma ou fim, acarretem ou possam acarretar riscos para a saúde, a
segurança e os interesses económicos dos consumidores.”