sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Ouçam! Ouçam! O vento soprou, o ouvir não voltou e o dinheiro abalou…


“Atraída expressamente por uma empresa para um teste de audição, acabei por sair de lá, tão perturbada com a lavagem ao cérebro a que fui submetida, com um aparelho que importou em 3 600 € e um contrato de crédito de valor equivalente.

Ainda não decorreu um mês, já lá voltei para afinações, mas o facto é que não noto nenhumas melhorias.

Continuo a ouvir com graves deficiências.

O que fazer?”


Importa oferecer a resposta que se nos afigura adequada:

 

1.    O contrato celebrado tem os contornos de uma venda fora de estabelecimento (DL 24/2014, de 14 de Fevereiro)

 

2.    Com efeito, são também consideradas vendas fora de estabelecimento as efectuadas…

 

 

2.1.       no estabelecimento comercial ou através de quaisquer meios de comunicação à distância imediatamente após o consumidor ter sido, pessoal e individualmente, contactado em local que não seja o do estabelecimento (DL 24/2014: subal. i) da al. i) do art.º 3.º).

 

2.2.       no local indicado pelo fornecedor (o estabelecimento)  a que o consumidor se desloque, por sua conta e risco, na sequência de uma comunicação comercial feita próprio fornecedor … (DL 24/2014: subal. vi) da al. i) do art.º 3.º).

 

3.    O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial é reduzido a escrito e deve, sob pena de nulidade, conter, de forma clara e compreensível e em língua portuguesa, o clausulado constante da lei (DL 24/2014: n.º 1 do art.º 9.º).

 

4.    O fornecedor deve entregar ao consumidor uma cópia do contrato assinado…, em papel ou, se o consumidor concordar, noutro suporte duradouro (DL 24/2014: n.º 2 do art.º 9.º).

 

 

 

5.    Se o contrato não tiver sido celebrado por escrito, a venda é nula por falta de forma legal (Cód. Civil: art.º 220; DL 24/2014: n.º 1 do art.º 9.º).

 

6.    A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (Cód. Civil: art.º 286).

 

7.    Se o contrato tiver sido regularmente celebrado, a saber, de papel passado, terá 14 dias para lhe pôr termo, contanto que a cláusula conste do contrato (DL 24/2014: n.º 1 do art.º 10.º)

 

8.    Se do contrato não constar, o período para o efeito prolonga-se por mais 12 meses contados do termo dos 14 dias originais, tempo dentro do qual ‘pode dar o dito por não dito’ (DL 24/2014: n.º 2 do art.º 10.º)

 

9.    No entanto, se o lapso para o efeito se tiver esgotado, há ainda uma hipótese, já que a consulente fala de avaria, de vício, de não conformidade: é que pode lançar mão da Lei da Compra e Venda de Consumo que versa sobre as garantias legais e contratuais (DL 84/2021, de 18 de Outubro).

 

10.  Em princípio teria de observar uma dada hierarquia no recurso aos remédios previstos na lei: primeiro, reparação ou substituição e, só depois, os outros remédios ali consignados (DL 84/2021: art.º 15).

 

11.  Como, porém, a deficiência detectada nos aparelhos ocorreu nos 30 dias subsequentes à entrega, pode desde logo pôr termo ao contrato sem observar a enunciada hierarquia: “Nos casos em que a [não] conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata … resolução do contrato”: é o denominado “direito de rejeição” (DL 84/2021: art.º 16).

 

12. Com a extinção do contrato (por meio de resolução), o consumidor devolve os aparelhos e o fornecedor restitui-lhe o preço pago: no caso, porém, há um contrato de crédito que titula o pagamento.

 

13. Em tais circunstâncias, “a invalidade ou a [retractação] do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”, logo, o contrato de crédito caduca, cai com as consequências daí resultantes; ou, no caso de não conformidade, o contrato de crédito também se extingue (DL 133/2009: n.º 2 do art.º 18; al. c) do n.º 3 do art.º 18, respectivamente).

 

 

 

EM CONCLUSÃO:

 

a.    Tratando-se de um contrato subsumível na categoria de fora de estabelecimento (ainda que outorgado no espaço do estabelecimento do fornecedor), a sujeição a forma é inevitável, o contrato tem de ser reduzido a escrito (DL 24/2014: n.º 1 do art.º 9.º).

 

b.    Não o sendo, o contrato é nulo (Cód. Civil: art.º 220; DL 24/2014: n.º 1 do art.º 9.º).

 

c.    A nulidade obriga à devolução da coisa e à restituição do preço (Cód. Civil: 289).

 

d.    Sendo esta a factualidade, dispensa-se, na conclusão, por fastidioso, a síntese das hipóteses a propósito aventadas de 7 a 11 supra.

 

Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.

 

Mário Frota

presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal

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