DIÁRIO ‘AS BEIRAS’
edição de 20 de Outubro de 2020
A malta sem ‘cheta’
e no ar a obrigatoriedade da ‘gorjeta’
“A ‘trapalhada’ dos preços nos restaurantes não beneficia ninguém e é factor de enorme insegurança: água da torneira em copo não descartável gratuita, mas com possibilidade de se facturar o preço da operação de lavagem do copo; meias-doses proibidas, mas - a admitir-se a partilha - prato e talher suplementares susceptíveis de cobrança de um dado valor…
Há já donos de restaurantes, snacks e cafés a cobrar gorjeta, no Porto, como se de algo de obrigatório se tratasse. para aliviarem assim os encargos com a folha salarial dos trabalhadores.
Poderá o sector da restauração fazê-lo sem previsão da lei?”
Apreciada a questão, cumpre opinar:
1. Tempo houve em que as gorjetas representavam 10% do consumo e figuravam como parte suplementar da factura, com carácter de obrigatoriedade: e o sistema admitia-o.
2. Muitos estabelecimentos serviam-se de tais montantes para compor a folha salarial dos trabalhadores, com uma base mínima e o mais em resultado da taxa de serviço repartida equitativamente pelos seus servidores. Noutros, os ‘trabalhadores’ percebiam só e tão só o valor das gorjetas…
3. Em ano recuado, alterou-se o sistema: os preços deveriam ser globais, neles se incluindo a gratificação reservada aos trabalhadores, a denominada “taxa de serviço”, instaurando-se o regime “ttc: toutes taxes comprises” (“todas as taxas incluídas”).
4. Ainda assim, subsistiu o hábito, por parte de alguns, de oferecer um montante à parte aos trabalhadores (a título individual ou como contributo para um ‘monte comum’ dividido pelos beneficiários).
5. De modo que - seguindo-se uma tal “praxis” - as refeições encareceram, porque no preço se incluiria já o serviço, o valor da gratificação, fixado, em regra, em 10%.
6. Havia quem entendesse que a gorjeta, como ‘esmola’, feria a dignidade do trabalhador (Cfr. nosso “Contrato de Trabalho I”, Coimbra Editora. 1978)
7. O pretender fazer-se acrescer agora (e de novo), na factura, uma percentagem do preço, a título de serviço, briga com o que a lei estabelece de forma meridiana: “preço é o preço total em que se incluem todos os impostos, taxas e outros encargos que nele se repercutam”.
8. O desmantelamento do regime dos preços na restauração, a que ora se assiste, sem reacção de quem quer, numa indisciplina indescritível, a ninguém serve, com efeito: nem aos consumidores nem aos titulares dos estabelecimentos nem aos trabalhadores, ainda que precários.
9. Constitui, em nosso entender, crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35 da Lei Penal do Consumo de 1984, a cobrança de um qualquer montante, a bel talante dos titulares dos estabelecimentos, para além do preço em si mesmo apurado, seja a que título for, mormente de “taxa de serviço”.
10. A moldura penal para a especulação oscila entre os 6 meses e os 3 anos e multa não inferior a 100 dias (sendo que, no limite, a pena de multa pode atingir os € 500/dia) [DL28/84: proémio do art.º 35].
EM CONCLUSÃO
a. Os preços dos serviços de hotelaria, restauração, cafetaria e bar são, como os demais preços de produtos e serviços aos consumidores, “preços totais em que se incluem todos os impostos, taxas e outros encargos que nele sejam repercutidos” (Lei dos Preços de 1990/1999: n.º 1 do art.º 5.º; DL 10/2015: n.º 1 do art.º 135)
b. Se aos preços acrescerem outros valores, a título de “taxas”, comissões ou “percentagem de serviço”, comete o titular do estabelecimento o crime de especulação a que se comina pena de prisão e multa (de seis meses a três anos e multa não inferior a 100 dias, respectivamente) (DL 28/84: art.º 35).
c. Por conseguinte, no actual quadro do direito, não são consentidas, em separado, “taxas ou comissões de serviço”, em percentagem susceptível de acrescer ao preço do serviço prestado.
d. A recriação de uma tal taxa de serviço (gorjeta), à revelia da lei, constitui manifesta ilicitude susceptível de configurar um tipo legal de crime.
Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal
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