segunda-feira, 22 de maio de 2023

Opinião: Inteligência artificial e ignorância natural


 O fascínio pelas máquinas é antigo. Do homem-máquina de Descartes aos Mensch-Maschinen dos Kraftwerk vai um pulo de breves séculos. Há muito que não queremos ser o reflexo carnal de um padrão divino. Ao arquétipo transcendental preferimos o mimetismo da vida mecânica.

Sacrificamos o homem sagrado ao homem roldana. Aos nervos, tendões, veias, linfa e neurónios, preferimos as correias, os parafusos, os veios, as transmissões elétricas, a CPU.

Stanley Kubrick, antes de todos, em 2001: A Space Odyssey, inventou o vingativo e caprichoso computador sentimental, esse inesquecível HAL, nemesis de astronautas em busca de um regresso a um primevo calor maternal.

As humildes calculadoras de há décadas fazem figura de parentela pobre ao lado das super máquinas digitais do pobre tempo presente.

Se a vida no que realmente importa fosse uma competição de rapidez de cálculo, melhor, se a vida fosse cálculo puro, capacidade de correlação lógica e outras vanidades do género, então deveríamos abandonar o reino do homem ao prodigioso universo numérico.

Acontece que viver não é calcular. Acontece que pensar não é estabelecer correlações lógicas. Acontece que existir no mundo da vida não é respirar algoritmos.

A deificação iluminista do admirável novo mundo digital traduz uma profundíssima ignorância da natureza humana.

As máquinas podem simular o amor. Mas são incapazes de amar. As máquinas não se apaixonam, não sofrem, não odeiam, ignoram a traição e a compaixão.

As máquinas desconhecem a intensa comunicação relacional do mundo vegetal. E estão a anos luz da quietude orgânica do vivente mundo mineral.

Não deixa de ser motivo de espanto, em todo o caso, a infinita ignorância dos sacerdotes do digital. Desconhecem que o inconsciente freudiano é estranho a cérebros mecânicos. Fazem tábua rasa do estado da arte da biologia e das neurociências contemporâneas. Ignoram, por altivez numérica ou por estupidez natural, que o cérebro humano, ou o de um asno, ou o de uma formiga, ou o de uma centopeia, é infinitamente mais complexo que o de qualquer maquinaria computacional.

Porque as máquinas, ainda que quânticas – celeste adjetivo – não fazem a menor das ideias do que seja ter olhos para ver, nariz para cheirar, pele para tocar, ouvidos para escutar, coração para amar.

As máquinas não sabem nada do viver humano. Das experiências, das raízes comovidas, das falhas, das exaltações, dos fracassos. Da dor. Da perda. Do abandono. Do breve encontro. Do longo adeus. Da vontade de terra. Da vontade de céu. Da vontade de nada. Da vontade de tudo.

As máquinas são menos que insetos. As máquinas são menos que calhaus. As máquinas são menos que cardos.
Só as slots machines e as jukeboxes têm direito a partilhar os mundos das nossas vidas. Porque nós fazem felizes.

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