DIREITOS DO CONSUMIDOR: AINDA MAL
CONSOLIDADOS?
DIREITO DO
CONSUMO: UM
DIREITO MENOR?
UM DIREITO
DOS DESVALIDOS QUE ESCAPA AOS FAVORES DOS CULTORES DO DIREITO?
“O
Direito do Consumo, na realidade, ainda não abandonou, entre nós, os “cueiros”…
E, ao que se nos
afigura, o facto é só – e tão só – imputável à Universidade. Com honrosas
excepções, é facto, em que se inclui a Universidade Nova de Lisboa, com uma
disciplina de opção no curso de direito ali professado.
À Universidade, em
geral, pelo conservadorismo de que dá mostras. Pela resistência a novas
realidades.
E, como reflexo,
decisões menos ponderadas, em particular dos tribunais superiores por não
aceitarem a categoria dos contratos de consumo que postulam soluções distintas
das dos contratos civis ou comerciais em circulação no “mercado”…
Também neste particular há honrosas excepções.
Já o saudoso Neves
Ribeiro, ao tempo vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em voto de
vencido em acórdão de 03 de Abril do recuado ano de 2003, execrava o alheamento
de tais realidades por banda das instâncias e também do Supremo, como na
situação "sub judicio".
Vale citar, com
aplauso, o teor do sumário do acórdão de 04 de Dezembro de 2013 do Supremo
Tribunal de Justiça, relatado por Fernandes do Vale, que reconhece, aliás, a
categoria e disso tira todas as consequências, ao invés do que sucede com o
Tribunal de Conflitos, como adiante se apreciará.
Eis o seu teor:
“I - Os contratos de fornecimento de água por empresas concessionárias não são
subsumíveis a quaisquer preceitos constantes do ETAF.
II - Tais contratos não são administrativos,
porquanto não são objecto de uma regulação baseada em normas de direito
administrativo, sendo, antes, contratos de consumo, em parte regulados por
normas que protegem os direitos dos consumidores.
III - Tais
contratos ordenam-se no âmbito do direito privado, sendo, pois, contratos de
direito privado; razão por que assiste aos tribunais judiciais e não aos
tribunais administrativos a competência para apreciar e decidir os litígios
emergentes de tais contratos.”
Já o Tribunal de
Conflitos, chamado a dirimir litígio em que em causa se achava a jurisdição
idónea para o efeito e, no seu seio, o órgão de judicatura competente, por
acórdão de 15 de Maio de 2014 da lavra de Fernanda Maçãs, num equívoco patente
se limita a exprimir-se como segue:
“É competente para
conhecer uma acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias na qual
a autora, concessionária da exploração e gestão de serviços públicos municipais
de distribuição de água, pede a condenação do [demandado] no pagamento de
quantias relativas ao fornecimento de água objecto do referido contrato, a
jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.”
Tais situações exprimem
em concreto o desvario que entre nós se instalou com grave reflexo no estatuto
do consumidor e, em geral, notórios prejuízos que se traduzem em perdas tanto
de ordem patrimonial como no plano da não patrimonialidade, a saber, a
reclamada dignidade susceptível de gerar uma reparação de ordem moral, como sem
dificuldade se perceberá.
Portugal carece de
um esforço redobrado para situar as coisas nas coordenadas devidas e, assim,
repensar a geometria do direito na sua dimensão mais abarcante e das especificidades
que adornam cada uma das variantes.
Mas tal passa
necessariamente por um consequente estudo de um tal “ramo” - para se recuperar
uma categoria algo esbatida e ausente dos debates ou até das noções
introdutórias do direito - que nem se basta com os princípios de direito civil,
enquanto direito privado comum, nem a sua factualidade se subsume às regras
neste passo vertidas nos textos, menos ainda, em determinadas categorias de
contratos como os dos serviços públicos essenciais, dentro e fora do catálogo,
com o que emerge do direito administrativo, como determinadas decisões parece
pressuporem…
O direito do
consumo não é nem residual (uma espécie de mosaico dos rebotalhos dos mais
acervos) nem algo de episódico susceptível de se restringir a normas em que se
actuam os direitos consignados no quadro dos direitos económicos
constitucionalmente consagrados com os desenvolvimentos de pormenor a que uma
lei avulsa confere expressão…
É mais do que um
“ramo” meramente funcional, ao que se nos afigura, dado constituir, por dispor
de objecto próprio, uma disciplina dotada de autonomia e com uma metodologia
que a contradistingue em confronto com ou no seio das mais.
Resumir, como o
fazem alguns civilistas, o direito do consumo a duas obrigações mais de banda
do fornecedor ou contraparte, nas relações jurídicas que se entretecem no seu
âmbito, a saber, a de informação e a de segurança, é escamotear de todo a
plétora de princípios susceptíveis de se captar no quadro da disciplina e a
subtrair-lhe a substância que o torna não uma simples e pontual excepção a
regras gerais, mas um verdadeiro "jus
specialis" no "mare magnum"
do direito privado, entre nós, como no Brasil, na Argentina, em França ou em
Itália…
Claro que há, de
banda de certos ordenamentos, uma cruzada hercúlea para “civilizar” o direito
do consumo ou para “consumerizar” o
direito civil, sem que o fenómeno retire a relevância de uma reflexão a tal
propósito e, no que nos toca, a despeito de tentativas em contrário, pese
embora a opinião de alguma doutrina, é algo que não tira nem põe. Já que a
realidade é de uma meridiana evidência, vale por si e por si só se impõe.
E nem é preciso
estabelecer aqui uma linha de fronteira entre o direito civil e o direito do
consumo ou entre este e o direito comercial para se concluir da natureza
distinta, dos distintos princípios e regras que regem o direito do consumo, na
sua fragmentária dispersão, mas na sua notável singularidade.
Do que se não pode
é, como hoje ocorre com estranhas decisões dos tribunais superiores, perante
realidades outras, exumar os actos de comércio unilaterais para se agravar as
condições de exercício de direitos e obrigações dos consumidores no domínio
contratual, com absoluto olvido da letra e do espírito de determinados diplomas
legais e em oposição manifesta a uma realidade que tende a sonegar-se ou a
fazer cair, sempre e só em detrimento do consumidor e para avantajar os seus
contendores…
Impõe-se
que o direito do consumo, mais de
seis lustres sobre a primeira Lei de Defesa do Consumidor, em Portugal, ocupe o
lugar a que faz jus e que a Universidade, no seu conjunto, se não mostre
retrógrada no tratamento de matérias que são indispensáveis para uma exacta
compreensão da economia e do mercado de consumo em que o consumidor representa,
afinal, o papel primeiro enquanto actor e protagonista.
Em homenagem, afinal, ao direito como pêndulo nas relações sociais que se
aparelham sobretudo no mercado e com projecção no quotidiano de cada um e
todos.
Mário Frota
apDC –DIREITO DO CONSUMO - Coimbra
Projecto com o apoio do Fundo do Consumidor