A
DIRECTIVA ANTI-SLAPP
E
SEUS PRESSUPOSTOS
(Directiva
2014/1069/EU, de 11 de Abril de 2014)
CONTINUAÇÃO
PARTE
II
(15) As SLAPP são
geralmente instauradas por entidades poderosas, como indivíduos, grupos de
lóbis, grandes sociedades comerciais, políticos e órgãos do Estado, numa
tentativa de silenciar o debate público. Envolvem frequentemente um
desequilíbrio de poderes entre as partes, com o demandante a ter uma posição
financeira ou política mais poderosa do que o demandado. Embora não seja uma
componente indispensável deste tipo de processos, quando existe, tal
desequilíbrio aumenta significativamente os efeitos prejudiciais e os efeitos
dissuasores dos processos judiciais contra a participação pública. Quando
existe, a utilização abusiva da vantagem económica ou da influência política do
demandante contra o demandado, juntamente com a falta de mérito da causa,
suscita especial preocupação no caso de os processos judiciais abusivos em
questão serem financiados, direta ou indirectamente, por orçamentos de Estado e
combinados com outras medidas estatais directas e indirectas contra as
organizações de comunicação social independentes, o jornalismo independente e a
sociedade civil.
(16) Os processos
judiciais contra a participação pública podem ter um impacto negativo na
credibilidade e na reputação das pessoas singulares e colectivas envolvidas na
participação pública e podem esgotar os seus recursos financeiros e outros. Em
resultado destes processos, a publicação de informações sobre uma questão de
interesse público pode ser adiada ou totalmente impedida. A duração dos
processos e a pressão financeira podem ter um efeito dissuasor nas pessoas
singulares e colectivas envolvidas na participação pública. Por conseguinte, a
existência de tais práticas pode ter um efeito dissuasor no seu trabalho,
contribuindo para a autocensura em antecipação de eventuais processos judiciais
futuros, o que conduz ao empobrecimento do debate público em detrimento da
sociedade no seu conjunto.
(17) As pessoas visadas
por processos judiciais abusivos contra a participação pública podem enfrentar
vários processos em simultâneo, por vezes instaurados em várias jurisdições. A
presente directiva aplica-se apenas a matérias de natureza civil ou comercial
com incidência transfronteiriça, embora as práticas destinadas a impedir,
restringir ou penalizar a participação pública possam também envolver processos
administrativos ou penais ou uma combinação de diferentes tipos de processos.
Os processos instaurados na jurisdição de um Estado-Membro contra uma pessoa
com domicílio noutro Estado-Membro são geralmente mais complexos e onerosos
para o demandado. Os demandantes em processos judiciais contra a participação
pública podem também utilizar instrumentos processuais para aumentar a duração
e os custos do litígio e instaurar processos numa jurisdição que considerem ser
favorável ao seu caso, em vez de na jurisdição mais bem colocada para apreciar
a acção («forum shopping»). A pressão financeira, a duração e a variedade
dos processos e a ameaça de sanções constituem instrumentos poderosos para
intimidar e silenciar vozes críticas. Estas práticas também impõem encargos
desnecessários e prejudiciais aos sistemas judiciais e conduzem a uma
utilização abusiva dos seus recursos, constituindo, portanto, um abuso desses
sistemas.
(18) As garantias
previstas na presente directiva deverão aplicar-se a qualquer pessoa singular
ou colectiva que se envolva directa ou indirectamente na participação pública.
Deverão também proteger as pessoas singulares ou colectivas que, a título
profissional ou pessoal, apoiam, prestam assistência ou fornecem bens ou
serviços a outra pessoa para fins directamente relacionados com a participação
pública sobre uma questão de interesse público, como advogados, membros da
família, prestadores de serviços de Internet, editoras ou tipografias, que
enfrentam ou estão ameaçadas de SLAPP por apoiarem as pessoas visadas por um
processo judicial, lhes prestarem assistência ou lhes fornecerem bens ou
serviços.
(19) A presente directiva
deverá aplicar-se a qualquer tipo de processo judicial ou de acção de natureza
civil ou comercial com incidência transfronteiriça em acções cíveis,
independentemente da natureza do órgão jurisdicional, incluindo aos processos
relativos a medidas provisórias e cautelares, reconvenções ou outros tipos
específicos de vias de recurso disponíveis ao abrigo de outros instrumentos. Se
forem deduzidos pedidos civis no âmbito de um processo penal, a presente directiva
deverá aplicar-se sempre que a apreciação destes pedidos seja totalmente regida
pelo direito processual civil. No entanto, não deverá aplicar-se sempre que a
apreciação desses pedidos seja regida total ou parcialmente pelo processo
penal.
(20) A presente directiva
não deverá aplicar-se às acções resultantes da responsabilidade do Estado por actos
ou omissões no exercício da autoridade do Estado (acta iure imperii) nem às
acções contra funcionários que agem em nome do Estado, nem às resultantes da
responsabilidade por actos praticados no exercício de poderes públicos,
incluindo a responsabilidade de funcionários oficialmente mandatados. Os
Estados-Membros podem alargar o âmbito de aplicação das garantias processuais
previstas na presente directiva de modo a abranger essas acções ao abrigo do
direito nacional. Em consonância com a jurisprudência constante do Tribunal de
Justiça da União Europeia, os processos judiciais poderão ainda estar
abrangidos pelo conceito de «matéria civil e comercial» referido na presente
directiva caso um Estado ou organismo público seja parte, se tais actos ou
omissões não ocorrerem no exercício da autoridade do Estado. A presente directiva
não deverá aplicar-se às matérias penais nem à arbitragem.
(21) A presente directiva
estabelece regras mínimas, permitindo assim que os Estados-Membros adoptem ou
mantenham em vigor disposições que são mais favoráveis às pessoas que se
envolvam na participação pública, incluindo disposições nacionais que
estabeleçam garantias processuais mais eficazes, como um regime de
responsabilidade que preserve e proteja o direito à liberdade de expressão e de
informação. A aplicação da presente directiva não deverá servir para justificar
um retrocesso relativamente ao nível de protecção já existente em cada
Estado-Membro.
(22) A participação
pública deverá ser definida como a produção de qualquer declaração ou a
realização de uma actividade por parte de uma pessoa singular ou colectiva no
exercício de direitos fundamentais como a liberdade de expressão e de
informação, a liberdade das artes e das ciências ou a liberdade de reunião e de
associação, e que digam respeito a uma questão de interesse público actual ou
futuro, incluindo a criação, a exposição, a publicidade, ou outra promoção de
comunicações, publicações ou obras jornalísticas, políticas, científicas,
académicas, artísticas, de comentário ou satíricas, e atividades de
comercialização. O interesse público futuro refere-se ao facto de determinada
questão poder não ser ainda de interesse público, mas poder passar a sê-lo
quando o público dela tomar conhecimento, por exemplo através de uma
publicação. A participação pública pode também incluir actividades relacionadas
com o exercício da liberdade académica ou artística, o direito à liberdade de
associação e de reunião pacífica, como a organização ou a participação em actividades
de representação de grupos de interesse, manifestações e protestos ou actividades
resultantes do exercício do direito a uma boa administração e do direito de
recurso efectivo, tais como reclamações perante tribunais ou órgãos
administrativos e a participação em audições públicas. A participação pública
deverá também incluir as actividades preparatórias, de apoio ou de assistência
que tenham uma ligação directa e inerente à declaração ou actividade que seja
visada no âmbito das SLAPP para sufocar a participação pública. Tais actividades
deverão dizer directamente respeito a um ato específico de participação pública
ou ter por base uma relação contratual entre quem é efectivamente visado pelas
SLAPP e a pessoa que realiza as actividades preparatórias, de apoio ou de
assistência. A instauração de uma acção, não contra um jornalista ou um
defensor dos direitos humanos, mas contra a plataforma na Internet na qual
estes publicam o seu trabalho, ou contra a empresa que imprime o texto ou a
loja que o comercializa, pode constituir uma forma eficaz de silenciar a
participação pública, uma vez que, sem tais serviços, não podem ser publicadas
opiniões, não havendo assim possibilidade de influenciar o debate público. Além
disso, a participação pública pode abranger outras actividades destinadas a
informar ou influenciar a opinião pública ou a promover ações por parte do
público, incluindo actividades de entidades privadas ou públicas relacionadas
com uma questão de interesse público, como a organização de investigações,
inquéritos, campanhas ou quaisquer outras acções colectivas, ou a participação
nas mesmas.
(23) Questão de interesse
público deverá ser definida como incluindo questões relevantes para o exercício
dos direitos fundamentais. Inclui questões como a igualdade de género, a protecção
contra a violência baseada no género e a não discriminação, a protecção do Estado
de direito, a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social. Deverá
ser entendida como incluindo também a qualidade, a segurança ou outros aspectos
pertinentes de bens, produtos ou serviços, sempre que tais questões sejam
pertinentes para a saúde pública, a segurança, o ambiente, o clima ou os
direitos dos consumidores e os direitos laborais. Um litígio puramente
individual entre um consumidor e um fabricante ou um prestador de serviços
relativo a um bem, produto ou serviço só deverá ser abrangido pela noção de
questão de interesse público se a questão contiver um elemento de interesse
público, por exemplo, se disser respeito a um produto ou serviço que não cumpra
as normas ambientais ou de segurança.
(24) As actividades de
uma pessoa singular ou colectiva que é uma figura pública deverão ser também
consideradas questões de interesse público, uma vez que o público pode nelas
estar legitimamente interessado. No entanto, não há interesse legítimo quando o
único objectivo de uma declaração ou de uma actividade relativa a tal pessoa é
satisfazer a curiosidade de uma determinada audiência em relação aos pormenores
da vida privada de uma pessoa singular.
(25) As questões sujeitas
a apreciação por um órgão legislativo, executivo ou judicial ou quaisquer
outros processos oficiais podem ser consideradas questões de interesse público.
Podem constituir exemplos específicos dessas questões: legislação em matéria de
normas ambientais ou de segurança dos produtos, licenças ambientais concedidas
a fábricas ou a minas poluentes ou processos judiciais com alcance jurídico que
extravase o processo em apreço, por exemplo, um processo em matéria de
igualdade, discriminação no lugar de trabalho, criminalidade ambiental ou
branqueamento de capitais.
(26) As alegações de
corrupção, fraude, peculato, branqueamento de capitais, extorsão, coacção,
assédio sexual e violência baseada no género, ou outras formas de intimidação e
criminalidade, incluindo a criminalidade financeira e os crimes ambientais, são
consideradas questões de interesse público. Se a irregularidade em causa for
uma questão de interesse público, não deverá ser relevante saber se é
qualificada como infracção penal ou administrativa nos termos do direito
nacional.
(27 As actividades
destinadas a proteger os valores consagrados no artigo 2.º do TUE e o princípio
da não ingerência nos processos democráticos e a proporcionar ou facilitar o
acesso público à informação com vista a combater a desinformação, incluindo a
protecção de processos democráticos contra ingerências indevidas, são
igualmente consideradas questões de interesse público.
(28) Os processos
judiciais abusivos contra a participação pública envolvem geralmente tácticas
de litigância utilizadas pelo demandante de má-fé, como tácticas relacionadas com
a escolha da jurisdição, a apresentação de um ou mais pedidos total ou
parcialmente infundados, o pedido de indemnizações exageradas ou excessivas, o
recurso a tácticas dilatórias ou a decisão de por termo ao processo numa fase
adiantada do mesmo, a instauração de processos múltiplos sobre matérias
semelhantes e a prática de fazer com que o demandado incorra em custos
desproporcionais durante o processo. O comportamento passado do demandante e,
em especial, quaisquer antecedentes em matéria de intimidação judicial deverão
também ser tidos em conta para determinar se o processo judicial apresenta um
carácter abusivo. Tais tácticas de litigância, que são muitas vezes
acompanhadas de várias formas de intimidação, de assédio ou de ameaças, antes
do processo ou enquanto este corre termos, são utilizadas pelo demandante para
outros fins que não o acesso à justiça ou o exercício genuíno de um direito e
visam produzir um efeito dissuasor da participação pública relativa ao assunto
em questão.
(continua)