E se o consumidor
O artigo quiser trocar
Isso é um mero favor
Ou um direito a
invocar?
(Artigo
publicado no Portal do PROCONS RS, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil,
a 28 de Dezembro de 2021)
Persistem, no ar, opiniões que de todo se não
compaginam com o direito em vigor.
E, o pior, é que muitos dos pretensos
jusconsumeristas as emitem como se de informação consistente se tratasse…
Quando, na verdade, é algo que atinge o estatuto do consumidor, no desvalor
conferido ao direito de que gozam.
É que aquando do procedimento de troca dos brindes de Natal (ou em qualquer outra
época festiva) insiste-se à exaustão que é de um “mero favor dos comerciantes que se trata”, que não de um efectivo e
consequente direito.
Em Portugal, como no Brasil, tal disparate
circula em detrimento do consumidor, deixando uma enorme margem aos
comerciantes que distorcem as situações com o aparente ou real beneplácito de
quem se consagra ao estudo e divulgação dos direitos do consumidor.
A propósito das prendas de Natal e da
susceptibilidade das trocas, um jornal de referência, dos poucos que ainda por
aí circulam em suporte papel, editado no Porto, recorreu, em tempos, a alguém
pretensamente ligado a uma “associação”
de “consumidores” [a saber, uma
mercearia de secos e molhados que cuida bem do seu "umbigo", de
procedência belga, e que agora até oferece para venda vinhos e outros produtos
dissimulados em cabazes de Natal! (a tal Deco-Proteste, Lda.)], a fim
de esclarecer todos e cada um acerca da matéria sob análise.
E o que ficou da opinião transcrita é que não
há qualquer direito à troca de produto por outro similar ou distinto: que se
trata de um simples favor, uma mera cortesia, repete-se, de UM FAVOR dispensado
aos consumidores, fruto da política de cada uma das empresas, sendo que o beneficiário
da oferta não pode almejar efectivamente à troca nem a poderá jamais reivindicar.
Algo que fica a bel talante de cada um dos estabelecimentos comerciais, que se
podem pura e simplesmente recusar a trocar porque nem há lei nem contrato que
nas suas formulações ou estipulações o consinta!
Nada de mais erróneo, ao que humildemente se
nos afigura!
À luz das leis vigentes no ordenamento jurídico
português, talvez não ignorem que nos contratos fora de estabelecimento
(conhecidos como “porta-a-porta”), em razão do desenho que de tais modalidades
se recorta em obediência à legislação
emanada de Bruxelas (do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros da União
Europeia), haja um período de ponderação ou de reflexão dentro do qual ao
consumidor é lícito exercer o seu direito de retractação (o de “dar o dito por
não dito”) no lapso de 14 dias (Directiva n.º 2011/83/EU, de 25 de Outubro, do
Parlamento Europeu; Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, emanado do
Governo português).
Mas, curiosamente (e tal doutrina não se nos
afigura se aplique com uma tal extensão no Brasil, dada a forma como as
formulações respectivas se acham redigidas), o contrato fora de estabelecimento
não se esgota nos exemplos comezinhos em que as vendas se processem
exclusivamente ao domicílio ou porta-a-porta.
Por “contratos
fora de estabelecimento” se entende, no denominado Espaço Económico Europeu
(União Europeia mais e Estados aderentes), um vasto leque de contratos, para
além dos celebrados no domicílio do consumidor, a saber, os:
• Celebrados no estabelecimento comercial do fornecedor ou através de quaisquer meios de
comunicação à distância imediatamente após o consumidor ter sido,
pessoal e individualmente, adrede contactado em local que não seja o do
estabelecimento comercial do fornecedor respectivo (contratos por apelo ou chamamento);
• Celebrados no local de trabalho do consumidor
(contratos ocasionais ou como tal expressamente organizados) ;
• Celebrados em reuniões em que a oferta de
bens ou de serviços seja promovida por demonstração perante um grupo de pessoas
reunidas no domicílio de uma delas, a pedido do fornecedor ou do seu
representante ou mandatário (contratos ‘tupperware’);
• Celebrados durante uma deslocação organizada
pelo fornecedor de bens ou por seu representante ou mandatário, fora do
respectivo estabelecimento comercial (contratos
em excursões adrede organizadas);
• Celebrados no local indicado pelo fornecedor
de bens, a que o consumidor se desloque, por sua conta e risco, na sequência de
uma comunicação comercial feita pelo fornecedor de bens ou pelo seu
representante ou mandatário (contratos-isco).
Nestes contratos, os consumidores dispõem, por lei,
de 14 dias para dar o dito por não dito. Não são contratos firmes. Estão
sujeitos a um período de reflexão ou ponderação, como se assinalou noutro
passo, dentro do qual os consumidores podem retractar-se, ou seja, “dar o dito
por não dito”, desfazendo-os de todo e sendo reembolsados do preço pago.
No
Brasil, rege para algumas das modalidades ínsitas neste particular o Código de
Defesa do Consumidor que, no seu artigo 49, estabelece:
“O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7
dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço,
sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do
estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.”
Claro que os contratos electrónicos ou por outros
meios de comunicação à distância também beneficiam de regime análogo aos de
fora de estabelecimento, nos termos dos diplomas enunciados. Com as restrições
e excepções que a lei esmiuçadamente consagra e de que fizemos eco noutros
artigos.
Ignoram
decerto, porém, tais opinadores a existência de outras modalidades contratuais,
disciplinadas, de resto, pelo Código Civil, em Portugal (artigos 923 a 933), que
não por qualquer normativa exclusivamente consagrada às relações jurídicas de
consumo.
Daí
que se recomende uma passagem pelas páginas do Código Civil português, cuja
disciplina se aplica subsidiariamente, como direito privado comum, como se não
ignora, às relações jurídicas de
consumo.
Nessa galeria de contratos perfilam-se as vendas a contento (artigos 923 e s), as
vendas sujeitas a prova (artigos 925
e s) e ainda as vendas a retro
(artigos 927 a 933).
Só nos ocuparemos das duas primeiras.
No Brasil, a venda a contento e a venda
sujeita a prova (para além da retrovenda restrita a imóveis) surgem como contratos
com cláusulas especiais à compra e venda, regendo aí os artigos 509 a 512 do
Código Civil.
Com enfoque
no ordenamento luso, como se recortam tais modalidades contratuais?
1. VENDA A CONTENTO:
É a que é feita sob reserva de a coisa agradar
ao consumidor.
A compra e venda a contento apresenta-se sob
duas modalidades:
. a primeira, como mera proposta de venda;
. a segunda, como contrato (há já um contrato e
não uma mera proposta contratual) susceptível de resolução, vale dizer, de ao
contrato se pôr termo, se a coisa não agradar ao consumidor.
1.1. Venda
a contento na primeira modalidade
No caso da proposta de venda, a coisa deve ser
facultada ao consumidor para exame.
A proposta considera-se aceita se, entregue a
coisa ao consumidor, este se não pronunciar dentro do prazo da aceitação que se
estabelecer (por exemplo, 8, 10, 15 dias…).
Neste caso, não haverá pagamento porque não há
contrato, mas, como se disse, uma proposta contratual. O que pode é haver uma
qualquer entrega do valor da coisa equivalente ao preço, a título de caução.
Devolvida a coisa, restituir-se-á a caução na
íntegra. Não há cá vales, menos ainda vales com prazos de validade, curtos ou
longos, com o fito de se vender ulteriormente, pelo seu valor, uma outra coisa.
1.2. Venda
a contento na segunda modalidade
Se as partes estiverem de acordo sobre a
resolução (a extinção) da compra e venda, isto é, sobre a faculdade de se pôr
termo ao contrato no caso de a coisa não agradar ao comprador, o vendedor pode
fixar um prazo razoável para tal, se nenhum for estabelecido pelo contrato ou,
no silêncio deste, pelos usos “comerciais”.
A entrega da coisa não impede que o consumidor
ponha termo ao contrato.
A devolução da coisa obriga à restituição do
preço, na íntegra, de imediato, sob pena de o vendedor incorrer em mora.
Neste aspecto, como há já contrato, se a ele se
puser termo, terá de se operar a restituição do preço e a devolução da coisa.
De há muito que defendemos neste particular que
se deveria legislar, a fim de se preverem coimas (sanções em dinheiro e sanções
acessórias) para o caso de o vendedor se atrasar a restituir o preço ou se o
quiser fazer por outro modo, seja através de vales ou por qualquer outra
modalidade de pagamento. Coisa que se não admite: o consumidor entregou
dinheiro, deve ser-lhe restituído o valor em numerário e não por qualquer outra
forma; pagou por cartão de débito ou de crédito, deve ser feito de imediato o
cancelamento do pagamento, de modo inequívoco e sem prejuízos de qualquer
espécie.
Como se fez agora quer no que se refere, de
forma ampla, às Garantias dos Bens de Consumo (Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de
Outubro) como no que se reporta à violação da Lei das Condições Gerais dos
Contratos (DL 109-G/2021, de 10 de Dezembro em curso) em que se aparelharam
coimas (sanções em dinheiro) em caso de incumprimento dos preceitos legais
aplicáveis.
1.3.
Dúvidas sobre a modalidade da venda
Em caso de dúvida sobre a modalidade que as
partes tiverem tido em mira, presume-se
que é a primeira a adoptada: ou seja, não que tivessem escolhido um
contrato de compra e venda susceptível de a ele se pôr termo se a coisa não
agradar ao consumidor, mas uma mera
proposta de venda.
2. VENDA SUJEITA A PROVA
A compra
e venda sujeita a prova está regrada no artigo 925 do Código Civil.
Aplica-se subsidiariamente aos contratos de consumo.
O regime é o que segue:
A venda sujeita a prova considera-se feita sob
a condição (suspensiva) de a coisa ser idónea para o fim a que é destinada e
ter as qualidades asseguradas pelo vendedor.
Condição suspensiva é aquela segundo a qual as
partes subordinam a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do
negócio jurídico.
Por conseguinte, se o acontecimento futuro
ocorrer, estaremos perante uma condição suspensiva: o negócio jurídico produz
os seus efeitos normais.
A venda sujeita a prova pode estar sujeita a
uma condição resolutiva.
A condição resolutiva é aquela segundo a qual
as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a extinção do
negócio.
Se o acontecimento se verificar, a condição
será resolutiva: o negócio não produzirá os seus efeitos.
A coisa deve ser facultada ao comprador para
prova.
A prova
deve ser feita dentro do prazo e segundo a modalidade estabelecida pelo
contrato ou pelos usos mercantis.
Se tanto o contrato como os usos forem omissos,
observar-se-ão o prazo fixado pelo vendedor e a modalidade escolhida pelo
comprador, desde que razoáveis.
Não sendo o resultado da prova comunicado ao
vendedor antes de expirar o prazo a que se refere o parágrafo anterior, a
condição tem-se por verificada quando suspensiva (isto é, o negócio produz os
seus efeitos normais, o contrato passa a ser firme) e por não verificada quando
resolutiva (o mesmo se dará aqui nessa hipótese).
3. VENDA
COM A FACULDADE DE TROCA
Mas ignoram ainda, ao que parece, o princípio
da autonomia da vontade, segundo o qual sob a epígrafe
Liberdade
contratual
se diz que (Código Civil: artigo 405)
“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a
faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos
diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes
aprouver.
2.
As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios,
total ou parcialmente regulados na lei”
E o facto é que os contratos que fornecedores e
consumidores celebram nestas circunstâncias (e é essa tanto a vontade de uns e
de outros, fundidas em negócio jurídico que - se assim não fora - nem os
consumidores comprariam nem os comerciantes venderiam) são-no com a faculdade
de troca em um dado período de tempo (que outrora fora de oito dias, pelo
recurso paralelo ao prazo do proémio do artigo 471 do Código Comercial, que, de
resto, constava das notas emitidas pelos estabelecimentos).
Contrato que é um híbrido do contrato de venda a contento ou sujeita a prova com consequências menos
gravosas para o comerciante que os verdadeiros e próprios contratos típicos,
nominados, como supra se definem, com a faculdade de troca do bem, já que se pactua
a substituição da coisa que não a sua devolução pura e simples.
E isso de há muito que faz parte também dos
usos comerciais que, nessa medida, vinculam. Não de trata de uma cortesia, de
um mero favor, de uma condescendência ou tolerância mercantil, que possa ser
recusada a cada instante, com uma instabilidade enorme para as partes e
nefastas consequências para o comércio.
Se se pactuar, porém, um contrato na modalidade
de venda a contento (ou como simples proposta contratual) ou sujeita a prova,
de modo esclarecido, os efeitos jurídicos são exactamente os que ali se
prevêem: a devolução da coisa e a restituição do preço (ou da eventual caução,
caso se trate de uma venda a contento na primeira modalidade, ou seja, como
mera proposta contratual) . Que não a simples troca ou substituição.
Não se fale, pois, em favor nem em mera
cortesia. Não se diga que os fornecedores não estão obrigados a efectuar as
trocas com as consequências daí emergentes. Porque, nestes termos, estarão
obrigados a tal. Sem discussões. Sob pena de descumprirem as obrigações
contratuais a que se adscrevem com as consequências a tal aparelhadas.
Mas seja qual for a modalidade do contrato,
impera também aqui a lei da garantia dos bens de consumo:
Em caso de desconformidade, o consumidor pode,
em termos de razoabilidade e adequação, lançar mão, no período de três (3) anos
[a partir do 1.º de Janeiro que se avizinha, que não para as compras até então
efectuadas, em que a garantia legal é ainda de dois (2) anos], dos remédios
conhecidos, não sujeitos, nos termos da lei ainda em vigor, a qualquer
precedência: ou envereda pela reparação da coisa ou pela sua substituição ou
pela redução do preço ou por pôr termo ao contrato com a devolução da coisa e a
restituição do preço. O que já não ocorre na Lei Nova em que há, com efeito,
uma precedência, já que prevalece a reposição em conformidade mediante a
reparação ou substituição) por imposição da normativa europeia a que os
Estados-membros terão inapelavelmente de se sujeitar.
Contanto é que, no lapso de 60 dias (ainda na
vigente Lei das Garantias que para a que lhe sucede não haverá esse lapso
restritivo, antes o pode o consumidor fazer nos dois anos que se lhe facultam
para o exercício do direito de acção), denuncie ao fornecedor a não
conformidade da coisa (o vício, o defeito, etc…).
Por conseguinte, e em conclusão
As
TROCAS de Brindes, de Prendas,
nesta
como em outras ocasiões,
Não
são MEROS FAVORES,
Antes
algo regrado no Código
ou
em resultado dos usos mercantis vinculativos
ou
do acordo das partes.
Há estabelecimentos que, como outrora,
estabelecem o período dentro do qual as trocas são possíveis...
Estão no cerne das negociações comerciais,
estão previstas na lei, são por tal disciplinadas, decorrem da livre negociação
entre as partes, resultam de usos comerciais consolidados.
Aliás, em decorrência de uma tal circunstância,
no decurso das medidas restritivas de circulação neste período subsistentes, é
o próprio Governo a decretar o que segue, como os media sobejamente divulgaram,
em decorrência do Conselho de Ministros Extraordinário de 21 de Dezembro em
curso:
“Também o prazo
para devoluções e trocas foi estendido até ao dia 31 de Janeiro de 2022.
Usualmente, estes movimentos ocorrem até meio do mês de Janeiro, de forma a dar
espaço às pessoas para analisarem os novos preços das lojas e as colecções
colocadas em promoção e as novas colecções de inverno.
“O prazo para o
exercício de direitos atribuídos ao consumidor que termine entre os dias 26 de
Dezembro e 9 de Janeiro, ou nos 10 dias posteriores àquele período, é
prorrogado até 31 de Janeiro de 2022”, escreve o Governo em comunicado.”
Favor
é
propender ou levar a que o consumidor proceda à troca num contrato a contento
ou sujeito a prova quando a lei lhe confere o direito à devolução pura e simples
da coisa (sem que se restitua o dinheiro ao consumidor, antes se lhe "imponha"
“à contre-coeur” a troca).
Entendamo-nos, pois!
Para que não haja nem subversão de direitos nem prejuízos para a parte mais débil, em
princípio, em contratos desta natureza. É que as confusões provocadas por
informações erróneas de “mal conseguidos especialistas” só acarretam danos de
tomo aos consumidores. E a tal há que obstar!
Mário
Frota
presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO –
Portugal