DIREITO DO
CONSUMO: Direito "SUBVERSIVO"?
O DIREITO DO
CONSUMO: um Direito subvalorizado? Um Direito menosprezado? Um Direito
ignorado?
(Revista
Luso-Brasileira de Direito do Consumo n.º 18)
Repare
no que, na nota 1 do nosso escrito “Direito Consumo & Crise Financeira”,
publicado no n.º 18, edição de Junho de 2015, da REVISTA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO CONSUMO, houvemos por bem
consignar:
“A
criação judicial de direito no limiar do século XXI”, eis o que propõe o
colégio de juízes - na génese de tão relevante evento na Região [Autónoma dos
Açores] - para a eloquente manifestação que nos congrega "hic et
nunc".
De
significar que neste particular, no segmento próprio do direito do consumo e dos
conflitos que estalem no seu seio, haverá lugar a uma cada vez menor
criatividade.
Pelas razões que se expenderão no passo subsequente. Como pela menor apetência
da judicatura, ao que parece, para uma tal realidade, como temos vindo a
advertir “urbi et orbi”.
Cfr.
o editorial da RPDC – Revista Portuguesa de Direito do Consumo -, editada pelo
Centro de Publicações da apDC, Coimbra, n.º 79, Setembro de 2014, do teor
seguinte:
“O Direito do Consumo, na
realidade, ainda não abandonou, entre nós, os “cueiros”…
E,
ao que se nos afigura, o facto é só – e tão só – imputável à Universidade. Com
honrosas excepções, é facto, em que se inclui a Universidade Nova de Lisboa,
com uma disciplina de opção no curso de direito ali professado.
À Universidade, em geral, pelo conservadorismo de que dá mostras. Pela
resistência a novas realidades.
E, como reflexo, decisões menos ponderadas, em particular dos tribunais
superiores por não aceitarem a categoria dos contratos de consumo que postulam
soluções distintas das dos contratos civis ou comerciais em circulação no
“mercado”…
Também neste particular há honrosas excepções.
Já
o saudoso Neves Ribeiro, ao tempo vice-presidente do Supremo Tribunal de
Justiça, em voto de vencido em acórdão de 03 de Abril do recuado ano de 2003,
execrava o alheamento de tais realidades por banda das instâncias e também do
Supremo, como na situação "sub judicio".
Vale
citar, com aplauso, o teor do sumário do acórdão de 04 de Dezembro de 2013 do
Supremo Tribunal de Justiça, relatado por Fernandes do Vale, que reconhece,
aliás, a categoria e disso tira todas as consequências, ao invés do que sucede
com o Tribunal de Conflitos, como adiante se apreciará.
Eis
o seu teor:
“I - Os contratos de fornecimento de água por empresas concessionárias não são
subsumíveis a quaisquer preceitos constantes do ETAF.
II
- Tais contratos não são
administrativos, porquanto não são objecto de uma regulação baseada em normas
de direito administrativo, sendo, antes, contratos de consumo, em parte
regulados por normas que protegem os direitos dos consumidores.
III
- Tais contratos ordenam-se no âmbito do direito privado, sendo, pois,
contratos de direito privado; razão por que assiste aos tribunais judiciais e
não aos tribunais administrativos a competência para apreciar e decidir os
litígios emergentes de tais contratos.”
Já
o Tribunal de Conflitos, chamado a dirimir litígio em que em causa se achava a
jurisdição idónea para o efeito e, no seu seio, o órgão de judicatura
competente, por acórdão de 15 de Maio de 2014 da lavra de Fernanda Maçãs, num
equívoco patente se limita a exprimir-se como segue:
“É
competente para conhecer uma acção especial para cumprimento de obrigações
pecuniárias na qual a autora, concessionária da exploração e gestão de serviços
públicos municipais de distribuição de água, pede a condenação do [demandado]
no pagamento de quantias relativas ao fornecimento de água objecto do referido
contrato, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.”
Tais
situações exprimem em concreto o desvario que entre nós se instalou com grave
reflexo no estatuto do consumidor e, em geral, notórios prejuízos que se
traduzem em perdas tanto de ordem patrimonial como no plano da não
patrimonialidade, a saber, a reclamada dignidade susceptível de gerar uma
reparação de ordem moral, como sem dificuldade se perceberá.
Portugal
carece de um esforço redobrado para situar as coisas nas coordenadas devidas e,
assim, repensar a geometria do direito na sua dimensão mais abarcante e das
especificidades que adornam cada uma das variantes.
Mas
tal passa necessariamente por um consequente estudo de um tal “ramo” - para se
recuperar uma categoria algo esbatida e ausente dos debates ou até das noções
introdutórias do direito - que nem se basta com os princípios de direito civil,
enquanto direito privado comum, nem a sua factualidade se subsume às regras
neste passo vertidas nos textos, menos ainda, em determinadas categorias de
contratos como os dos serviços públicos essenciais, dentro e fora do catálogo,
com o que emerge do direito administrativo, como determinadas decisões parece
pressuporem…
O
direito do consumo não é nem residual (uma espécie de mosaico dos rebotalhos
dos mais acervos) nem algo de episódico susceptível de se restringir a normas
em que se actuam os direitos consignados no quadro dos direitos económicos
constitucionalmente consagrados com os desenvolvimentos de pormenor a que uma
lei avulsa confere expressão…
É
mais do que um “ramo” meramente funcional, ao que se nos afigura, dado
constituir, por dispor de objecto próprio, uma disciplina dotada de autonomia e
com uma metodologia que a contradistingue em confronto com ou no seio das mais.
Resumir,
como o fazem alguns civilistas, o direito do consumo a duas obrigações mais de
banda do fornecedor ou contraparte, nas relações jurídicas que se entretecem no
seu âmbito, a saber, a de informação e a de segurança, é escamotear de todo a
plétora de princípios susceptíveis de se captar no quadro da disciplina e a
subtrair-lhe a substância que o torna não uma simples e pontual excepção a regras
gerais, mas um verdadeiro "jus
specialis" no "mare magnum"
do direito privado, entre nós, como no Brasil, na Argentina, em França ou em
Itália…
Claro
que há, de banda de certos ordenamentos, uma cruzada hercúlea para “civilizar”
o direito do consumo ou para “consumerizar”
o direito civil, sem que o fenómeno retire a relevância de uma reflexão a tal
propósito e, no que nos toca, a despeito de tentativas em contrário, pese
embora a opinião de alguma doutrina, é algo que não tira nem põe. Já que a
realidade é de uma meridiana evidência, vale por si e por si só se impõe.
E
nem é preciso estabelecer aqui uma linha de fronteira entre o direito civil e o
direito do consumo ou entre este e o direito comercial para se concluir da
natureza distinta, dos distintos princípios e regras que regem o direito do
consumo, na sua fragmentária dispersão, mas na sua notável singularidade.
Do
que se não pode é, como hoje ocorre com estranhas decisões dos tribunais
superiores, perante realidades outras, exumar os actos de comércio unilaterais
para se agravar as condições de exercício de direitos e obrigações dos
consumidores no domínio contratual, com absoluto olvido da letra e do espírito
de determinados diplomas legais e em oposição manifesta a uma realidade que
tende a sonegar-se ou a fazer cair, sempre e só em detrimento do consumidor e
para avantajar os seus contendores…
Impõe-se
que o direito do consumo, mais de seis lustres sobre a primeira Lei de Defesa
do Consumidor, em Portugal, ocupe o lugar a que faz jus e que a Universidade,
no seu conjunto, se não mostre retrógrada no tratamento de matérias que são
indispensáveis para uma exacta compreensão da economia e do mercado de consumo
em que o consumidor representa, afinal, o papel primeiro enquanto actor e
protagonista.
Em homenagem, afinal, ao direito como pêndulo nas relações sociais que se
aparelham sobretudo no mercado e com projecção no quotidiano de cada um e
todos.
Mário
Frota
apDC
–DIREITO DO CONSUMO - Coimbra