O fascínio pelas máquinas é antigo. Do homem-máquina de Descartes aos
Mensch-Maschinen dos Kraftwerk vai um pulo de breves séculos. Há muito
que não queremos ser o reflexo carnal de um padrão divino. Ao arquétipo
transcendental preferimos o mimetismo da vida mecânica.
Sacrificamos o homem sagrado ao homem roldana. Aos nervos, tendões,
veias, linfa e neurónios, preferimos as correias, os parafusos, os
veios, as transmissões elétricas, a CPU.
Stanley Kubrick, antes de todos, em 2001: A Space Odyssey, inventou o
vingativo e caprichoso computador sentimental, esse inesquecível HAL,
nemesis de astronautas em busca de um regresso a um primevo calor
maternal.
As humildes calculadoras de há décadas fazem figura de parentela
pobre ao lado das super máquinas digitais do pobre tempo presente.
Se a vida no que realmente importa fosse uma competição de rapidez de
cálculo, melhor, se a vida fosse cálculo puro, capacidade de correlação
lógica e outras vanidades do género, então deveríamos abandonar o reino
do homem ao prodigioso universo numérico.
Acontece que viver não é calcular. Acontece que pensar não é
estabelecer correlações lógicas. Acontece que existir no mundo da vida
não é respirar algoritmos.
A deificação iluminista do admirável novo mundo digital traduz uma profundíssima ignorância da natureza humana.
As máquinas podem simular o amor. Mas são incapazes de amar. As
máquinas não se apaixonam, não sofrem, não odeiam, ignoram a traição e a
compaixão.
As máquinas desconhecem a intensa comunicação relacional do mundo
vegetal. E estão a anos luz da quietude orgânica do vivente mundo
mineral.
Não deixa de ser motivo de espanto, em todo o caso, a infinita
ignorância dos sacerdotes do digital. Desconhecem que o inconsciente
freudiano é estranho a cérebros mecânicos. Fazem tábua rasa do estado da
arte da biologia e das neurociências contemporâneas. Ignoram, por
altivez numérica ou por estupidez natural, que o cérebro humano, ou o de
um asno, ou o de uma formiga, ou o de uma centopeia, é infinitamente
mais complexo que o de qualquer maquinaria computacional.
Porque as máquinas, ainda que quânticas – celeste adjetivo – não
fazem a menor das ideias do que seja ter olhos para ver, nariz para
cheirar, pele para tocar, ouvidos para escutar, coração para amar.
As máquinas não sabem nada do viver humano. Das experiências, das
raízes comovidas, das falhas, das exaltações, dos fracassos. Da dor. Da
perda. Do abandono. Do breve encontro. Do longo adeus. Da vontade de
terra. Da vontade de céu. Da vontade de nada. Da vontade de tudo.
As máquinas são menos que insetos. As máquinas são menos que calhaus. As máquinas são menos que cardos.
Só as slots machines e as jukeboxes têm direito a partilhar os mundos das nossas vidas. Porque nós fazem felizes.