domingo, 3 de novembro de 2024

Ó suma vilania! Sem pontas soltas, trocar as voltas à garantia…

 


(1.º de Novembro de 2024)

Ó suma vilania! Sem pontas soltas, trocar as voltas à garantia…

 

“Expirada a garantia de um veículo usado, adquirido em Fevereiro de 2022, sobreveio um problema na caixa de velocidades. Mandei-o à marca para reparação. Cinco meses depois, vi-me a braços com a mesma pane. Nova reparação, nova factura, esta de 478€ + IVA.

Disseram-me que por cada uma das reparações há uma garantia de seis meses. Se assim for, fui levado porque a avaria ainda estava na garantia.

Pergunto: há mesmo uma garantia de seis meses nestes casos?”

 Ante a factualidade revelada, cumpre emitir opinião:

 1.    Há patente equívoco quando se alude a uma garantia por reparação de seis meses fora do normal procedimento da compra e venda de consumo.

 2.     Na compra e venda de consumo, ao accionar-se a garantia, “em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo … adicional de seis meses por cada [uma das] reparaç[ões] até ao limite de quatro …, devendo o profissional, aquando da entrega do bem reparado, transmitir ao consumidor essa informação.” [DL 84/2021: n.º 4 do artigo 18].

 3.    Os seis meses adicionais de garantia só se observam nas hipóteses de compra e venda em que ocorra reposição de conformidade mediante reparação do bem - novo, recondicionado ou usado.

 4.    Não há, por conseguinte, qualquer garantia de seis meses por eventual reparação autónoma fora do quadro da garantia legal.

 5.    O que há é uma garantia de três anos nas prestações de serviço, já que o regime da compra e venda de consumo se aplica também:

 “a) …aos contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir;

 b) Aos bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens, com as necessárias adaptações” [DL 84/2021: als. a) e b) do n.º 1 do art.º 3.º].

6.  Ora, tratando-se de uma prestação de serviços, a garantia legal da compra e venda é aplicável a qualquer reparação (contanto se trate do ponto específico objecto de intervenção): “O profissional é responsável por qualquer [não] conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem” [DL 84/2021: al. a) do n.º 1 do art.º 12].

7. A reparação inicial está coberta pela garantia, razão por que intervenção subsequente não é susceptível de pagamento: a reparação é-o  «a título gratuito», livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de … transporte, mão-de-obra ou materiais” [DL 84/2021: al. a) do art.º 2.º].

8. Nem sequer o preço pode ser expresso, nas relações jurídicas de consumo, em (478 € + IVA), já que preço “é o preço total em que se incluem todos os impostos, taxas e encargos que [nele se repercutam]”, constituindo contra-ordenação grave uma tal formulação [DL138/90: n.º 6 do art.º 1.º; n.º 1 do art.º 11; DL 9/2021: al. b) do art.º 18].

9. Constitui crime de especulação o exigir-se preço indevido pela  reparação: o crime de especulação é passível de pena de prisão de seis meses a três anos e multa não inferior a 100 dias [DL 28/84: art.º 35].

10. Daí que deva exigir da oficina da marca, para além do cumprimento da garantia legal,  a devolução do montante indevidamente pago, denunciando à ASAE, órgão de polícia criminal, tais factos para a instrução dos autos.

 

 EM CONCLUSÃO

a.     As prestações de serviço - no âmbito das relações jurídicas de consumo – seguem o regime da compra e venda [DL 84/2021: al. b) do art.º 3.º].

b.    As prestações de serviço de consumo gozam, por conseguinte,  da garantia legal de 3 anos [DL 84/2021: al. a) do n.º 1 do art.º 12].

c.     A subsequente  reparação está abrangida pela garantia legal, que é gratuita, não sendo devido, pois, qualquer preço [DL 84/2021: al. a) do art.º 2.º]

d.    A cobrança de eventual valor configura crime de especulação cuja moldura é a de prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias [DL 28/84: art.º 35]

e.    Ainda que fosse devido um preço, a indicação de valor a que acresça o IVA padece de um ilícito de mera ordenação social  grave, passível de coima, de acordo com o Regime das Contra-Ordenações em Matéria Económica [DL 138/90: n.º 6 do art.º 1.º, n.º 1 do art.º 11; DL 9/2021: al. b) do art.º 18].

 Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.

 

Mário Frota

presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal

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